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Símbolo e Realidade    Max Born.                      Professor   de   toda   uma   série   de   sumidades   em   física   atômica,   entre   as   quais   Heisemberg   e   o   Oppenheimer,   Max   Born   recebeu,   em   1954,   o   Prêmio   Nobel de   Física   daquele   ano,   por   ter   inventado   uma   nova   maneira   de   pensar   sobre   os   fenômenos   naturais.   Sob   sua   direção   realizou-se   em   1920   uma   revolução científica   comparável   à   Teoria   da   Relatividade.   Partindo   das   premissas   de   Kant   na   "   Crítica   da   Razão   Pura",   Born   procura   mostrar   através   deste   trabalho   que   as experiências sensoriais do indivíduo transformam-se em conhecimento objetivo por intermédio dos símbolos como parte essencial do método. 1. Por que a ciência é abstrata e matemática?                   Se   alguém   que   não   é   físico,   químico   ou   astrônomo   passar   os   olhos   por   este   livro   ou   qualquer   outro   que   trate   dea   tais   ciências,   ficará   impressionado   com   a quantidade   de   símbolos   matemáticos   e   de   outras   naturezas   e   com   a   escassez   de   descrições   de   fenômenos   naturais.   Até   mesmo   os   instrumentos   de observação   são   apenas   imbolicamente   indicados   por   meio   de   diagramas.   E   ,   contudo,   o   livro   pretende   tratar   das   ciências   naturais.   Onde,   neste   acúmulo   de fórmulas,   encontra-se   a   natureza   viva   ?   De   que   modo   os   símbolos   físicos   e   químicos   relacionam-se   com   aa   realidade   experimentada   através   da   percepção   dos sentidos ?                   Até   o   próprio   cientista   poderá   eventualmente   ponderar   acerca   das   razões   que   o   levam   a   abordar   a   natureza   desse   modo   abstrato   e   formalista,   com   a   ajuda dos   símbolos.   A   opinião   mais   corrente   é   que   o   emprego   dos   símbolos   é   apenas   uma   questão   de   conveniência,   uma   espécie   de   taquigrafia   para   trabalhar   e dominar   a   abundância   de   material.   Penso,   porém,   que   o   problema   é   mais   complexo.   Já   aludi   a   ele   em   outro   trabalho,   ao   discutir   como   a   ciência   transforma   as experiências   sensoriais   do   indivíduo   em   conhecimento   objetivo.   Desde   que   escrevi   aquelas   linhas,   passei   a   considerar   esta   questão   mais   detalhadamente   e convenci-me   de   que   os   símbolos   são   uma   parte   essencial   do   método   que   visa   a   compreender   a   realidade   física   subjacente   aos   fenômenos.   Tentarei   explicar esta idéia a seguir. 2. Realismo ingênuo                     A   realidade,   para   uma   pessoa   simplória   e   inculta,   é   aquilo   que   ela   sente   e   percebe.   A   existência   real   das   coisas   que   a   cercam   parece-lhe   tão   segura   com   as suas   sensações   de   dor,   alegria   ou   esperança.   Pode   ser   que   uma   ilusão   de   ótica   venha   revelar-lhe   que   uma   percepção   pode   dar   margem   a   juízos   duvidosos   ou mesmo manifestamente errôneos acerca de fatos reais.Ma isso nunca passa, na superfície da consciência, de uma curiosa e divertida exceção.                   Esta   atitude   é   chamada   de   realismo   ingênuo.   A   grande   maioria   das   pessoas   conserva   esta   mentalidade   por   toda   a   vida,   muito   embora   possam   aprender   a distinguir entre a experiência subjetiva, como o prazer, a dor, a epectativa, a frustração e as experiências objetivas que envolvem as coisas do mundo exterior.       Mas, com certas pessoas, alguma coisa acontece que as afeta profundamente e as torna céticas. No meu caso, ocorreu do seguinte modo.                   Eu   tinha   um   primo   mais   velho   que   estudava   na   universidade,   enquanto   eu   ainda   estava   no   colégio.   Além   das   conferências   sobre   química,   ele   seguia também   um   curso   de   filosofia   que   lhe   causava   impressão.   Certa   vez,   ele   perguntou-me   de   improvisto:   "   O   que   você   quer   dar   a   entender   exatamente   quandi diz   que   esta   planta   é   verde   ou   que   o   céu   é   azul   ?"   Considerei   a   pergunta   um   tanto   supérflua   e   respondi:   "Digo   verde   ou   azul   somente   0porque   é   assim   que   vejo tais   cores,   exatamente   como   você".   Isso,   porém,   não   o   satisfez:   "Eistem   pessoas   daltônicas   que   vêem   as   cores   de   modo   diferente;   alguns,   por   exemplo,   não podem   distinguir   o   vermelho   e   o   verde".   Então,   levando-me   para   um   canto,   explicou-me   que   não   havia   qualquer   meio   de   determinar   o   que   uma   outra   pessoa percebe e que até mesmo a afirmação "ele percebe o mesmo que eu" não tinha qualquer sentido claro.       Assim, tornou-se patente para mim que todas as coisas são essencialmente subjetivas - todas, sem exceção. Foi um choque para mim.                   O   problema   não   era   distinguir   entre   o   subjetivo   e   o   objetivo,   mas   conceber   um   meio   de   emancipar-se   do   subjetivo   e   chegar   a   proposições   objetivas.   Quero dizer   desde   já   que   não   encontrei   qualquer   resposta   satisfatória   e   essa   questão   em   nenhum   tratado   filosófico.   Mas,   ocupando-me   com   a   física   e   ciências correlatas, cheguei, perto do fim da vida, a uma solução que, em certa medida, parece-me aceitável. 3. Kant                   Naquele   tempo   distante,   sendo   um   rapazinho,   eu   seguia   o   meu   primo   e   menor,   que   me   aconselhou   a   ler   Kant.   Mais   tarde,   aprendi   que   o   problema   -   a maneira   pela   qual   o   conhecimento   objetivo   se   origina   das   percepções   sensoriais   do   indivíduo   e   que   significa   este   conhecimento-   era   muito   mais   antigo;   que, por   exemplo,   a   doutrina   das   idéias   de   Platão   era   uma   formulação   antiga,   seguida   de   diversas   especulações,   dos   filósofos   antigos   e   medievais   até   os precursores   imediatos   de   Kant,   os   empiristas   ingleses   Locke,   Berkeley   e   Hume.   Não   pretendo,   contudo,   discorrer   sobre   a   história   da   filosofia;   quero   dizer apenas   umas   poucas   palavras   sobre   Kant,   já   que   ele   influenciou   o   pensamento   dos   homens   até   nossos   dias   e   que   pretendo   valer-me   de   parte   de   sua terminologia.                   Cito   uma   passagem   da   Crítica   da   Razão   Pura,   de   Kant   ("Estética   transcendental"):   "   Os   objetivos   nos   são   dados   por   meio   de   impressões   sensoriais,   eles produzem   nossas   percepções.   São,   então,   subsumidos   pela   razão,   que   produz   conceitos".   Assim   Kant   sugere   que   os   objetos   da   percepção   são   os   mesmos   para os   indivíduos   e   que   os   conceitos   ideados   pela   razão   são   moldados   da   mesma   forma   por   todos   os   indivíduos.   De   acordo   com   Kant,   todo   conhecimento   refere- se   aos   fenômenos,   mas   não   é   determinado   unicamente   pela   experiência   (a   posteriori)   mas   também   pela   estrutura   da   nossa   mente   (   a   priori).   As   formas   a priori da nossa percepção são o espaço e o tempo; as formas a priori da razão são chamadas categorias que inclui, por exemplo, a causalidade.                   A   questão   de   saber   se   além   do   mundo   dos   fenômenos   há   um   outro   mundo   dos   fenômenos   de   objetos   que   existem   por   si   (números)   é,   tanto   quanto   posso ver,   deixadas   sem   rsposta   por   Kant.   Ele   se   refere   à   "coisa   em   si"   mas   a   declara   incognoscível.   Cito   uma   passagem   do   livro   de   Bertrans   Russel,   Wisdom   of   the West (Macdonald, Londres, 1957); na pág. 241, ele afirma:                   "Pela   teoria   Kantiana,   é   impo´ssível   fazer   sentir   a   experiência   de   uma   coisa   em   si,   uma   vez   que   todas   as   experiências   se   realizam   com   o   concurso   do espaço,   do   tempo   e   das   categorias.   Podemos,   quando   muito,   inferir   que   tais   coisas   existem   a   partir   da   fonte   externa   de   impressões   por   ele   postulada. Estritamente   falando,   nem   mesmo   isso   é   permissível,   já   que   não   dispomos   de   um   meio   independente   para   descobrir   que   tais   fontes   existem,   e   mesmo   que dispuséssemos,   não   poderíamos   afirmar   serem   elas   a   causa   das   nossas   impressões   sensoriais.   Pois,   se   falamos   em   causalidade,   já   nos   encontramos   dentro   da malha de conceitos a priori que operam no interior do entendimento".                   O   conceito   vago   de   "   coisa   em   si"   é   geralmente   considrerado   um   ponto   fraco   da   doutrina   de   Kant.   Tem-se   que   supor   algo   assim   para   compreender   como   as percepções   sensoriais   e   suas   elaborações   conceituais   feitas   por   indivíduos   isoladamente   podem   conduzir   a   proposições   objetivas,   válidas   para   todos   os indivíduos. Mas essa condição preliminar de todo conhecimento objetivo é ela própria declarada incognoscível por Kant.       Tentarei mostrar como é possível fugir desse dilema através de métodos científicos de pensamento.       Antes, porém, quero fazer um breve resumo das atitudes em relação a este problema, tomadas por sistemas filosóficos posteriores a Kant. 4. Sistemas filosóficos posteriores                   Não   posso   demorar-me   na   pré-história   do   problema   de   como   experiências   subjetivas   são   transformadas   em   conhecimento   objetivo,   mas   apenas   observar que   ele   já   havia   sido   vagamente   discutido   por   Platão,   através   de   seu   conhecido   símile   da   caverna,   e,   mais   extensamente,   por   filósofos   posteriores,   em particular o pensador cético David Hume. Os filósofos posteriores a Kant assumiram diversas atitudes em relação a ele.                   Existem   alguns   sistemas   filosóficos   que   admitem   como   real   apenas   o   mundo   do   indivíduo,   isolado,   o   ipse.   Na   minha   juventude,   um   livro   alemão   da   autoria de   Stirner,   O   Único   e   sua   Propriedade   (Der   Einzige   und   sein   Eigentum),   era   amplamente   lido;   como   revela   o   título,   ele   adota   este   ponto   de   vista   "solipsista".   O fato de me lembrar do título revela que o livro causou-me impressão.                   Muito   mais   amplamente   aceita   é   a   opinião,   aparentemente   partilhada   por   Kant,   de   que   ´[e   algo   evidente   por   si   e   que   prescinde   de   qualquer   demonstração, serem   idênitcas   as   percepções   sensoriais   de   diferentes   indivíduos,   consistindo   o   problema   apenas   em   investigar   esse   mundo   comum   dos   fenômenos.   Tal   visão é   adotada   pelos   assim   chamados   sistemas   idealistas,   que   culminaram   em   Hegel,   e   por   muitos   outros,   entre   os   quais   a   "fenomenologia"   de   Husserl,   a   cujas aulas   assisti   há   sessenta   anos   em   anos   em   Gottingen.   Ele   ensinava   que   o   conhecimento   podia   ser   obtido   através   de   um   processo   mental   denominado "intuição da essência" (Wesenschau). Isso, porem, não me satisfez.                   A   escola   do   positivismo   lógico,   que   tem   suas   raízes   na   obra   do   físico   e   filósofo   Ernst   Mach   e   é   amplamente   aceita   hoje   em   dia,   prega   uma   dou-   trina   menos obscura   porém   ainda   mais   radical.   Somente   as   impressões   sensoriais   imediatas   são   tidas   como   reais;   tudo   o   mais,   todo   o   universo   conceitual   da   vida   cotidiana e   da   ciência   é   encarado   como   não   tendo   outro   propósito   que   não   o   de   constituir   conexões   lógicas   entre   as   impressões   sensoriais.   0   filósofo   americano   Henry Margenau   introduziu   o   termo   "construções"   ("constructs")   para   designar   tudo   isso.   Nas   interpretações   mais   radicais,   esta   teoria   significa   a   negação   da existência   de   um   mundo   exterior   ou,   em   ultima   instancia,   a   negação   de   sua   cognoscibilidade.   Na   vida   pratica,   um   adepto   desta   doutrina   dificilmente   agiria como   se   não   existisse   mundo   exterior   algum.   Todas   estas   teorias   fundamentam-se   na   premissa   de   que   o   mundo   das   percepções   sensoriais   e   o   "mesmo"   para todos os indivíduos. 0 que isso significa e deixado em aberto.                   0   "materialismo"   do   bloco   comunista   das   nações   do   Leste   classifica   todas   estas   teorias   de   "idealistas"   e   a   elas   se   opõe   violentamente.   Sustenta,   sem   provas naturalmente   e   tão   só   como   um   axioma,   existir   uma   realidade   independente   do   sujeito.   Marx   e   Engels   parecem   considerar   isso   como   o   realista   ingênuo:   a matéria   é   fundamental;   a   percepção   da   mente   e   uma   de   suas   manifestações.   Esse   "materialismo   mecanicista",   entretanto,   não   se   conciliou   facilmente   com   os progressos   da   física.   Pois   nela   as   concepções   primitivas   da   matéria   desapareceram   para   dar   lugar   ao   conceito   de   "campo"   e,   eventualmente,   a   idéias   ainda mais   abstratas.   Por   isso,   Lenin   inventou   o   "materialismo   dialético",   em   que   o   antigo   termo   "matéria"   é   preservado,   porém   compreendido   de   modo   tão   genérico que   nenhum   dos   seus   significados   se   preserva   (tal   como   aconteceu   com   a   sua   utilização   de   outras   palavras,   "democracia",   por   exemplo).   0   axioma   básico   e   "a existência   de   um   mundo   exterior   real,   objetivamente   cognoscível".   Sendo   a   filosofia   de   Lenin   uma   espécie   de   religião   oficial   no   Leste,   um   problema   que ocupou e atormentou a mente de tantos pensadores tornou-se um artigo de fé, zelado pelo poder do Estado.       Assim sendo, qual e a opinião dos físicos ou, mais geralmente, dos cientistas acerca do problema da realidade?                   Quero   crer   que   a   maioria   deles   são   realistas   ingênuos   que   não   quebram   a   cabeça   com   sutilezas   filosóficas.   Contentam-se   com   observar   um   fenômeno, medi-lo   e   descreve-lo   em   seu   idioma   característico.   Na   medida   em   que   tem   de   lidar   com   instrumentos   e   sistemas   experimentais,   eles   se   valem   da   linguagem comum ornamentada por termos técnicos adequados, como e de praxe em toda atividade.                   Mas   tão   logo   passam   a   teorizar,   isto   e,   a   interpretar   suas   observações,   eles   se   utilizam   de   um   outro   meio   de   comunicação.   Já   na   mecânica   de   Newton,   a primeira   teoria   física   no   sentido   moderno   da   expressão,   aparecem   conceitos   que   não   correspondem   a   coisas   elementares,   tais   como   força,   massa,   energia. Com   o   progresso   das   investigações,   essa   tendência   tornou-se   cada   vez   mais   acentuada.   Na   teoria   do   eletromagnetismo   de   Maxwell,   desenvolveu-se   o   conceito de   campo,   inteiramente   estranho   ao   mundo   das   coisas   perceptíveis.   Leis   quantitativas   expressas   por   fórmulas   matemáticas,   como   as   equações   de   Maxwell, tornaram-se   cada   vez   mais   predominantes.   0   mesmo   se   verificou   com   a   teoria   da   relatividade,   a   física   atômica,   a   química   moderna.   Eventualmente,   na mecânica   quântica,   deparamo-nos   com   um   caso   em   que   o   formalismo   matemático   foi   desenvolvido   ate   o   limite   e   com   sucesso   antes   que   uma   interpretação vazada nas palavras da linguagem comum fosse encontrada, e mesmo hoje em dia isso ainda não se acha definitivamente estabelecido.                   0   que   se   passa   aqui?   Na   física,   as   formulas   matemáticas   não   são   um   fim   em   si   mesmo   como   na   matemática   pura,   mas   símbolos   para   alguma   espécie   de realidade   que   se   situa   além   do   nível   das   experiências   cotidianas.   Asseguro   que   esse   fato   se   acha   estreitamente   ligado   a   questão:   como   é   possível   alcançar   um conhecimento objetivo a partir de experiências subjetivas? 5. Métodos de pensamentos na física                   Proponho   abordar   este   problema   com   os   métodos   de   pensamento   utilizados   pelos   físicos.   Somente   uma   pequena   parte   destes   métodos   e   deriva-   da   de sistemas   filosóficos.   Eles   foram   desenvolvidos   justamente   porque   a   maneira   tradicional   de   pensar   dos   filósofos   fracassou   ao   ser   aplicada   a   física   moderna.   A sua   eficácia   deve-se   ao   fato   de   que   eles   se   mostraram   bem   sucedidos.   Quero   dizer   que   não   apenas   eles   contribuíram   para   a   compreensão   dos   fenômenos naturais como também conduziram a descoberta de novos, muitas vezes impressionantes, fenômenos e ao domínio do homem sobre a natureza.                   À   reflexão   que   proponho,   entretanto,   não   cabe   o   rótulo   de   "empirismo",   tão   desdenhado   pelos   metafísicos.   As   regras   de   pensamento   utilizadas   pelos físicos   não   derivam   da   experiência,   são   idéias   puras,   invenções   de   grandes   pensadores.   Entretanto,   elas   são   comprovadas   num   campo   extremamente   vasto   da experiência.   Por   essa   razão,   não   pretendo   tratar   da   filosofia   da   ciência,   mas   considerar   a   filosofia   de   um   ponto   de   vista   científico.   Estou   certo   de   que   os metafísicos farão objeções a isso, mas não posso deixar de fazê-lo.       Para começar, enumerarei alguns destes métodos de pensamento e discutirei suas origens e resultados. A. 'Decidibilidade"                   Proponho   a   expressão   "decidibilidade"   (embora   não   exista   tal   palavra   no   dicionário)   para   uma   regra   fundamental   do   pensamento   cientifico:   usar   um conceito somente quando for decisória sua aplicação ou não a um determinado caso.                   Quando   surgiram   dificuldades   aparentemente   insuperáveis   nos   campos   da   eletrodinâmica   e   da   óptica   dos   corpos   em   movimento,   Einstein   descobriu   que elas   poderiam   ser   reduzidas   a   suposição   de   que   o   conceito   de   simultaneidade   de   eventos   em   lugares   diferentes   tem   um   sentido   absoluto.   0   que,   explicou   ele, não   era   o   caso,   devido   ao   fato   de   que   a   velocidade   da   luz   usada   como   sinalização   é   finita;   com   a   ajuda   de   recursos   da   física,   pode-se   apenas   estabelecer   uma simultaneidade   relativa   com   respeito   a   um   sistema   particular   de   coordenadas   (inercial).   Esta   concepção   conduziu   a   teoria   da   relatividade   restrita   e   a   uma   nova doutrina do espaço e do tempo. As concepções de espaço e tempo de Kant como formas a priori da intuição foram, finalmente, refutadas.                   Na   verdade,   as   dúvidas   nesse   sentido   haviam   surgido   muito   antes.   Pouco   tempo   depois   de   Kant,   as   geometrias   não-euclidianas   haviam   sido   descobertas como   possibilidades   lógicas   por   Gauss,   Bolyai   Lobatchefski.   Gauss   procurou   verificar   experimentalmente   se   a   geometria   euclidiana   estava   correta   medindo   os ângulos   do   triângulo   formado   pelos   cumes   de   três   morros   alemães   (Brocken,   Inselsberg,   Hohe   Hagen).   Não   encontrou   um   desvio   da   soma   dos   ângulos   em relação   ao   valor   euclidiano   de   180º.   Seu   sucessor,   Riemann,   acolheu   a   idéia   de   que   a   geometria   era   parte   da   realidade   empírica   e   desenvolveu   uma   grandiosa generalização em que a noção de um espaço curvo foi introduzida e trabalhada com rigor matemático.                   Na   teoria   da   gravitação   de   Einstein,   habitualmente   chamada   de   relatividade   generalizada,   o   principio   da   "decidibilidade"   foi   novamente   usado.   Einstein partiu   do   fato,   bem   estabelecido   experimentalmente,   de   que,   num   campo   gravitacional,   a   aceleração   de   todos   os   corpos   e   uniforme,   independentemente   de suas   massas.   Um   observador   num   cubículo   fechado   não   pode,   portanto,   decidir   se   a   aceleração   de   um   corpo   em   relação   ao   cubículo   é   devida   ao   campo gravitacional   ou   a   uma   aceleração   do   cubículo   na   direção   oposta.   A   partir   deste   simples   argumento,   desenvolveu-se   a   colossal   estrutura   da   teoria   da relatividade   generalizada.   0   principal   instrumento   matemático   foi   a   geometria   de   Riemann,   acima   mencionada,   aplicada   a   um   espaço   quadridimensional,   ou seja, uma combinação do espaço e do tempo comuns.                   Menciono   tudo   isso   a   fim   de   ilustrar   o   poder   e   a   fecundidade   do   principio   da   "decidibilidade".   Um   outro   resultado   bem   sucedido   deste   principio   pode   ser encontrado   na   mecânica   quântica.   Após   um   esplêndido   início,   a   teoria   de   Bohr   relativa   ao   movimento   orbital   dos   elétrons   no   átomo   deparou-se   com dificuldades.   Heisenberg   observou   que   a   teoria   lidava   com   quantidades   essencialmente   não   observáveis   (órbitas   eletrónicas   de   dimensões   e   períodos definidos)   e   esboçou   uma   nova   teoria   que   se   utilizava   apenas   de   conceitos   cuja   validade   fosse   empiricamente   comprovável.   A   nova   mecânica,   de   cujo desenvolvimento   eu   participei,   descartou   uma   outra   das   categorias   a   priori   de   Kant:   a   causalidade.   Na   física   clássica,   a   causalidade   sempre   fora   interpretada como   determinismo   (e   Kant,   indubitavelmente,   também   a   interpretou   como   tal).   A   nova   mecânica   quântica   não   era   determinista,   mas   estatística   (ponto   sobre o qual voltarei). Seu sucesso em todos os ramos da física esta fora de duvida.       Considero razoável aplicar o principio de "decidibilidade" também ao problema filosófico da origem de uma imagem mental do mundo objetivo. B. Comparabilidade. Símbolos                   0   ponto   de   que   partimos   era   a   interrogação   cética:   como   é   possível   inferir   de   um   mundo   subjetivo   de   experiências   a   existência   de   um   mundo   exterior objetivo?   Na   verdade,   esta   inferência   é   inata   e   tão   natural   que   duvidar   dela   parece   mais   um   absurdo.   Mas   a   duvida   existe   e   todos   os   esforços   rumo   a   uma solução, seja do tipo "coisa em si" de Kant ou dogma de Lenin, são insatisfatórios porque violam o principio de "decidibilidade".                   Agora,   a   impossibilidade   de   decidir   se   o   verde   que   eu   enxergo   e   o   mesmo   verde   que   você   enxerga   se   deve   ao   esforço   de   chegar   a   concordar   com   uma única impressão sensorial. Não há duvida alguma de que isso é impossível.                   Mas   para   duas   impressões   do   mesmo   órgão   sensorial,   por   exemplo,   duas   cores,   existem   proposições   decisórias   e   comunicáveis,   objetivamente comprováveis:   elas   se   referem   a   comparação   de   duas   impressões,   em   particular   no   que   se   refere   a   sua   igualdade   ou   desigualdade   (em   vez   de   igual   e   desigual, seria   melhor   dizer   distinguível   e   indistinguível;   mas   tal   refinamento   psicológico   ano   vem   ao   caso   nestas   considerações   lógicas).   Não   resta   qualquer   dúvida   de que   dois   indivíduos   podem   chegar   a   um   acordo   acerca   de   tais   comparações.   Embora   não   me   seja   possível   descrever   para   outra   pessoa   o   que   percebo   quando digo   que   uma   coisa   é   verde,   podemos   ambos   constatar   e   concordar   que   duas   folhas   que   a   mim   parecem   apresentar   a   mesma   coloração,   causam   nele   também a   mesma   impressão.   Além   da   "igualdade",   existem   ou   trás   relações   de   pares   comunicáveis   e   objetivas;   sobretudo,   as   do   tipo   mais-   menos,   por   exemplo,   claro- escuro,   forte-fraco,   quente-frio,   duro-mole   etc.   Mas   não   necessitamos   discutir   estas   possibilidades.   A   existência   de   propriedades   comunicáveis   relativas   aos pares e o suficiente.                   Na   física,   este   principio   de   objetivação   e   conhecido   e   praticado   sistematicamente.   Cores,   sons   e   ate   mesmo   formas   são   considerados   ano   em   separado, mas   aos   pares.   Todo   iniciante   aprende   o   chamado   método   zero   em   óptica,   por   exemplo,   segundo   o   qual   um   instrumento   e   de   tal   forma   ajustado   que   a diferença    preceptiva    entre    dois    campos    visuais    (em    brilho,    coloração,    saturação)    desaparecer.A    leitura    de    uma    escala    significa    a    observação    de    uma "igualdade"   geométrica,   uma   coincidência   entre   o   ponteiro   e   uma   linha   da   escala.   Grande   parte   da   física   experimental   consiste   nessa   espécie   de   leitura   de escala.                   0   fato   de   serem   possíveis   proposições   objetivas   através   da   comparação   de   pares   e   de   enorme   importância   por   ser   a   raiz   da   fala   e   da   escrita   e   do   mais poderoso   instrumento   de   pensamento,   a   matemática.   Proponho   que   se   utilize   o   termo   "símbolos"   para   designar   todos   estes   meios   de   comunicação   entre   os indivíduos.                   Os   símbolos   são   mais   facilmente   reprodutíveis,   signos   visuais   ou   acústicos   ou   sinais   cuja   figura   exata   não   tem   qualquer   importância,   bastando-lhes   uma reprodução   tosca.   Se   escrevo   (ou   pronuncio)   "A''   e   uma   outra   pessoa   também   escreve   (ou   pronuncia)   "A",   cada   um   perceberá   o   seu   próprio   "A"   e   o   do   outro como   iguais,   óptica   e   acusticamente.   0   que   importa   e   a   igualdade   aproximada   ou   uma   certa   semelhança   -   o   aspecto   topológico,   diria   o   matemático   -   não particularidades como a altura da voz, um floreio ou ornamento qualquer da escrita ou da impressão.       Os símbolos são portadores da comunicação entre os indivíduos, sendo, portanto, decisivos para a viabilidade do conhecimento objetivo. C. Correspondência. Coordenação                Em   suas   Maximen   und   Reflektionen   ("Máximas   e   Reflexões''),   Goethe   afirma   o   seguinte:   "Existe   uma   certa   regularidade   desconhecida   no   objeto   que corresponde a regularidade desconhecida no sujeito".                   Cito   isso   não   apenas   por   sua   relação   com   a   nossa   discussão   em   torno   da   subjetividade   e   da   objetividade,   mas   também   por   causa   da   palavra   "corresponde" .   Goethe,   com   seu   dom   de   adivinhação,   utilizou   um   conceito   a   que   se   pode   chamar   Urbegriff   (conceito   primário)   de   todo   saber,   compreensão,   entendimento. Digo   "primário",   traduzindo   a   silaba   alemã   Ur,   que   o   próprio   Goethe   emprega   em   muitos   casos   semelhantes:   "planta   primaria"   (Urpflanze),   na   sua   doutrina   das metamorfoses;   "fenômeno   primário"   (Urphanomen),   na   sua   teoria   das   cores.   Em   vez   de   "corresponde",   tornou-se   corrente   o   uso   da   palavra   "coordena",   que significa fazer as coisas corresponderem.                   A   criança   aprende   a   falar   significa:   a   criança   aprende   a   coordenar   palavras   e   sentenças   em   relação   a   coisas,   pessoas,   ações,   percepções.   A   escrita   e   a coordenação   de   símbolos   vi-   suais   relativos   a   esses   fenômenos   ou   as   palavras   correspondentes.   A   contagem   e   a   coordenação   dos   numerais,   "um,   dois,   três, ...",   aprendidos   de   cor,   em   relação   a   uma   seqüência   de   coisas   similares.   A   matemática   moderna   estendeu   este   princípio   a   conjuntos   infinitos   de   coisas   através da    chamada    "teoria    dos    conjuntos"    (Mengenlehre),    introduzida    por    Georg.    Cantor,    que    demonstrou,    por    exemplo,    que    ano    se    pode    estabelecer    uma correspondência   mutua   do   tipo   biunívoco   entre   os   pontos   de   uma   linha   (finita)   e   o   conjunto   de   todos   os   números   inteiros   (1,   2,   ...   até   ao   infinito);   o   que significa que existem infinitos conjuntos de "números" diferentes.                   Na   geometria,   os   pontos   no   espaço   relacionam-se   a   grupos   de   números   chamados   "coordenadas".   Assim,   para   cada   fato   geométrico   corresponde   um   outro analítico,   ou   seja,   um   teorema   no   domínio   dos   números.   A   característica   essencial   da   matemática   não   são   os   números,   mas   a   noção   de   coordenação   (2). Existem   doutrinas   matemáticas   extensivas   e   fundamentais,   como   a   teoria   dos   grupos,   em   que   os   números   desempenham   papel   insignificante.   Na   física,   a primeira   descoberta   não   puramente   mecânica   mas   já   propriamente   física   e   um   exemplo   perfeito   de   coordenação,   ou   seja,   a   descoberta   por   Pitágoras   de   que os   intervalos   naturais   na   musica,   oitava,   quinta,   quarta   etc.,   correspondem   as   divisões   de   uma   corda   vibratória   segundo   proporções   simples,   2/1,   3/2,   .   4/3   etc. Na   verdade,   existe   uma   dupla   correspondência   entre   as   percepções   do   ouvido   (intervalos   musicais),   do   olho   ou   dos   músculos   (comprimento   da   corda)   e   os números.                   A   medida   da   intensidade   do   calor   (temperatura)   por   meio   de   um   termômetro   é   a   coordenação   da   percepção   do   calor   a   uma   quantidade   geométrica   (o comprimento da coluna de mercúrio, a posição da agulha de um galvanômetro) e desta, por sua vez, novamente a um numero (valor da escala).                   A   química   coordena   as   substâncias   através   de   combinações   de   símbolos   que   são   abreviações   dos   nomes   de   um   certo   numero   de   substancias   elementares (átomos).   A   raiz   histórica   desse   procedimento   e   o   fato   de   que,   através   da   coordenação   dos   pesos   atômicos   aos   símbolos   dos   elementos,   pode-se   chegar   a   ler os   pesos   moleculares,   a   partir   da   combinação   de   símbolos   atômicos   que   os   representam,   e   através   da   coordenação   das   valências   aos   símbolos   dos   átomos, podem-se prever as possibilidades de reações. Posteriormente, este método elementar de descrição das cadeias químicas foi incorporado pela teoria atômica. D. Estruturas                   Esta   correspondência   entre   as   impressões   sensoriais   e   os   símbolos   estabeleceu-se   em   todos   os   campos   da   experiência.   Ela   é   suficiente   para   as necessidades    da    vida    cotidiana:    as    palavras    e    sentenças    de    uma    linguagem,    seja    falada    ou    escrita,    correspondentes    a    percepções,    emoções    etc.,    são aprendidas   e   utilizadas   sem   maiores   questionamentos   (realismo   ingênuo).   Assim,   a   imagem   mental   do   mundo   é   formada   pelo   homem   comum   e   apurada   pela literatura.                      A   ciência   vai   um   passo   adiante.   Não   sei   se   o   que   vou   dizer   se   aplica   a   todas   as   ciências   e   humanidades.   Quero   falar   apenas   das   ciências   exatas   que conheço. Nelas, são utilizados símbolos matemáticos, os quais possuem uma particularidade: revelam as estruturas.                      A   matemática   consiste   justamente   na   descoberta   e   investigação   das   estruturas   de   pensamento   que   existem   ocultas   nos   símbolos   matemáticos.   A   entidade matemática   mais   simples,   a   série   de   números   inteiros   1,   2,   3,   ...,   consiste   em   símbolos   combinados   de   acordo   com   certas   regras,   os   axiomas   aritméticos.   A mais   importante   destas   regras   é   a   da   coordenação   interna:   a   cada   número   inteiro   segue-se   um   outro.   Estas   regras   determinam   um   vasto   número   de estruturas,   a   exemplo   dos   números   primos,   com   suas   propriedades   especiais   e   sua   complicada   distribuição,   os   teoremas   de   reciprocidade   dos   restos quadráticos   etc.   A   geometria   cuida   de   estruturas   especiais   que   se   manifestam   analiticamente   como   invariantes   em   transformação.   A   teoria   dos   grupos   trata   de estruturas   que   surgem   quando   certas   séries   de   operações   são   repetidas,   tais   como   as   permutações   de   conjuntos   de   letras   ou   as   operações   de   simetria   como as rotações de imagens refletidas no espelho e outras.                   Essas   estruturas   são   estruturas   do   pensamento   puro.   A   transição   para   a   realidade   é   levada   a   cabo   pela   física   teórica,   que   correlaciona   os   símbolos   aos fenômenos   observados.   Quando   isso   é   possível,   as   estruturas   ocultas   são   coordenadas   aos   fenômenos;   são   precisamente   essas   estruturas   que   os   físicos julgam ser a realidade objetiva subjacente aos fenômenos subjetivos.                   É   impossível   descrever   este   processo   em   sua   enorme   diversidade.   Só   se   pode   salientar   um   ponto   de   vista   histórico:   desde   Newton,   as   estruturas   contidas nas   equações   diferenciais   tem   sido   utilizadas   e   se   tornaram   familiares.   A   razão   disso   é   que   elas   possibilitam   uma   ligação   direta   com   experiências   de   fatos comuns   da   vida   cotidiana.   A   mecânica   de   Galileu   partiu   destas   experiências.   A   seguir,   Newton   generalizou   de   tal   forma   os   conceitos   mecânicos   que   se   tornou possível   aplicá-los   aos   corpos   celestes.   As   primeiras   teorias   ópticas   utilizaram   modelos   mecânicos.   Supunha-se   que   o   espaço   fosse   ocupado   por   uma substância   denominada   éter   que   funcionava   como   condutora   de   vibrações,   conforme   as   leis   da   mecânica.   Até   mesmo   Maxwell   descobriu   e   verificou   as   suas equações   de   campo   com   a   ajuda,   a   princípio,   de   um   mecanismo   oculto.   Nos   primeiros   tempos   da   teoria   atômica,   eram   utilizados   modelos   mecânicos;   na teoria cinética dos gases, os átomos eram tidos por bolinhas elásticas que se repeliam uma as outras e as paredes do recipiente.                      Muito   lentamente,   e   contra   uma   violenta   oposição,   difundiu-se   a   opinião   de   que   os   modelos   não   apenas   eram   desnecessários,   como   também   constituíam um obstáculo ao progresso.                   0   primeiro   exemplo   importante   foi   o   tratamento   dispensado   por   Heinrich   Hertz   a   teoria   do   campo   eletromagnético   de   Maxwell.   Hertz   não   pode   ser chamado   unicamente   de   teórico,   pois   a   ele   devemos   a   verificação   experimental   da   teoria   através   da   sua   descoberta   das   ondas   eletromagnéticas.   No   entanto, ele considerava o campo eletromagnético como uma entidade em si que havia de ser descrita sem o recurso a modelos mecânicos.                   Desde   então,   o   desenvolvimento   prosseguiu   irresistivelmente   nesta   direção.   Um   fenômeno   natural   não   necessita   ser   reduzido   a   modelos   acessíveis   à imaginação ou explicável em termos mecânicos, mas, pelo contrário, possui sua própria estrutura matemática, diretamente derivada da experiência.                   Essa   mudança   de   perspectiva   foi   decisiva   quando   Planck   descobriu,   em   1900,   numa   pesquisa   sobre   a   irradiação   do   calor,   uma   nova   constante   da   natureza, o   quantum   da   energia.   Isso   não   se   ajustava   totalmente   ao   sistema   da   mecânica   newtoniana   e   das   teorias   físicas   construídas   a   sua   imagem.   E   verdade   que   os modelos   dos   movimentos   eletrônicos   nos   átomos   sugeridos   por   Niels   Bohr   eram   uma   microimitação   do   movimento   planetário.   No   entanto,   nem   todas   as orbitas   eram   "permitidas",   mas   apenas   certos   estados   "estacionários"   caracterizados   por   "condições   quânticas"   não-mecânicas,   sendo   que   as   transições   entre esses   estados,   os   "saltos   quânticos",   observavam   regras   que   não   encontram   qualquer   analogia   na   mecânica.   Quando   estes   progressos   culminaram   no estabelecimento da mecânica quântica, os modelos mecânicos e com eles a descrição causal da física clássica conheceram o seu fim.                   Assim,   a   investigação   física   adquiriu   uma   liberdade   necessária   para   manipular   uma   quantidade   crescente   de   observações   e   medições.   Tentamos   encontrar a   matemática   adequada   a   um   certo   domínio   da   experiência,   a   seguir   investigamos   a   sua   estrutura   e   a   consideramos   como   representativa   da   realidade   física, quer   ela   se   conforme   aos   fatos   estabelecidos   ou   não.   A   título   de   exemplo,   menciono   o   espaço   curvo   do   macrocosmo   (cosmologia)   e   os   átomos,   núcleos   e partículas elementares do microcosmo, que quase nada tem de comum com o ambiente que nos e familiar.                      Não   obstante,   uma   liberdade   ainda   maior   teve   de   ser   conquistada   antes   que   a   física   pudesse   reivindicar   o   direito   de   chamar   de   estruturas   as   imagens   da realidade que se encontram alem dos fenômenos. E. Probabilidade                   A   filosofia   sempre   se   mostrou   e   ainda   se   mostra   inclinada   a   emitir   juízos   definitivos,   categóricos.   A   ciência   foi   fortemente   influenciada   por   esta   tendência. Os primeiros físicos, por exemplo, consideravam o determinismo da mecânica newtoniana um mérito extraordinário.                   Mas   já   no   século   XVIII   o   conceito   de   probabilidade   aparece   na   física.   Na   tentativa   de   estabelecer   uma   teoria   molecular   dos   gases,   quantidades   verificáveis, tais   como   a   pressão,   foram   concebidas   como   termos   médios   de   colisões   moleculares.   No   século   XIX,   a   teoria   cinética   dos   gases   desenvolveu-se   ao   máximo, seguida    pela    mecânica    estatística    aplicável    a    todas    as    substancias    gasosas,    líquidas    e    sólidas.    0    conceito    de    probabilidade    passou    a    ser    aplicado sistematicamente e foi acolhido pelo sistema da física.                      Este   procedimento   foi   em   geral   justificado   em   face   da   incapacidade   humana   de   lidar   com   números   muito   grandes   de   partículas   segundo   métodos rigorosos; no entanto, o processo elementar, tal como a colisão de dois átomos, era suposto obedecer as leis da física clássica e determinista.                   Após   a   descoberta   da   mecânica   quântica,   esta   suposição   tornou-se   obsoleta.   Os   processos   elementares   não   obedecem   a   leis   deterministas   e   sim estatísticas, conforme a interpretação estatística da mecânica quântica.       Estou convencido de que noções como as de certeza absoluta, precisão absoluta, verdade última etc., são ilusões que devem ser excluídas da ciência.                   A   partir   do   conhecimento   restrito   do   presente   estado   de   um   sistema,   pode-se,   com   o   auxilio   de   uma   teoria,   deduzir   conjeturas   e   suposições   liga-   das   a   uma situação futura, expressas em termos de probabilidade. Todo enunciado de probabilidade pode ser, do ponto de vista da teoria usada, certo ou errado.                   Esta   indefinição   das   regras   do   pensamento   parece-me   ser   o   maior   beneficio   que   a   ciência   moderna   nos   proporcionou.   Pois   a   crença   de   que   existe   somente uma verdade e que uma só pessoa se acharia de posse dela parece-me ser a causa mais profunda de tudo o que ha de ruim no mundo. 6. Aplicação ao problema do mundo externo                   Antes   de   arrematar   estas   considerações,   gostaria   de   recordar   nosso   ponto   de   partida,   qual   seja,   o   choque   experimentado   por   toda   pessoa   imaginosa   ao   se dar   conta   de   que   uma   impressão   sensorial   isolada   não   é   comunicável,   e   daí   ser   ela   puramente   subjetiva.   Quem   quer   que   não   tenha   passado   por   esta experiência   julgará   sofística   toda   essa   discussão.   Em   certo   sentido,   isso   e   correto.   Pois   o   realismo   ingênuo   é   uma   atitude   natural   que   corresponde   a   situação biológica   da   raça   humana   bem   como   do   mundo   animal.   Uma   abelha   reconhece   as   flores   por   suas   cores   e   aromas   sem   necessitar   de   qualquer   filosofia.   Na medida   em   que   nos   restringimos   aos   dados   da   vida   cotidiana,   o   problema   da   objetividade   não   é   mais   que   um   produto   de   uma   elucubração   filosófica inconseqüente.                   Na   ciência,   contudo,   as   coisas   são   diferentes.   Nela,   há   que   se   lidar   freqüentemente   com   fenômenos   que   ultrapassam   a   experiência   cotidiana.   Aquilo   que   se vê   através   de   um   microscópio   de   alta   potência,   aquilo   que   se   percebe   com   o   auxilio   de   um   telescópio,   de   um   espectroscópio   ou   de   um   dos   vários   dispositivos eletrônicos   de   amplificação   é   incompreensível   sem   uma   teoria;   é   preciso   interpretar.   Seja   nos   domínios   mais   ínfimos   como   nos   mais   vastos,   no   do   átomo   ou no   das   estrelas,   deparamo-nos   com   fenômenos   que   não   se   assemelham   ao   aspecto   habitual   do   nosso   meio   e   que   somente   podem   ser   descritos   com   o   auxílio de conceitos abstratos. Nela, não se pode eludir o problema da existência de um mundo objetivo, independente do observador, além dos fenômenos.                   Não   creio   que   essa   questão   possa   ser   respondida   categoricamente   através   do   pensamento   lógico.   Mas   ela   pode   ser   resolvida   se   nos   valermos   da   liberdade de considerar como errado um enunciado extremamente improvável.                      A   suposição   de   que   a   coincidência   de   estruturas,   reveladas   pelo   uso   de   órgãos   dos   sentidos   diferentes   e   comunicável   de   um   indivíduo   a   outro,   não   passa de uma causalidade e é improvável no mais alto grau.                   É   este   o   procedimento   normal   do   raciocínio   científico,   não   só   da   ciência   como   também   de   qualquer   pesquisa.   Um   arqueólogo,   por   exemplo,   ao   descobrir em   dois   países   diferentes   vestígios   de   cerâmica   de   formato   idêntico,   concluirá   que   isso   não   pode   ser   uma   casualidade,   mas   pelo   contrario,   revelador   de   uma origem comum.                   Não   temo   em   identificar   essas   estruturas   bem   definidas   à   "coisa   em   si"   de   Kant.   As   objeções   mencionadas   anteriormente   na   formulação   de   Bertrand Russell   não   possuem   nenhuma   validade   do   nosso   ponto   de   vista.   Elas   consistem   no   seguinte:   a   existência   da   "coisa   em   si"   e   postulada   porque   se   necessita   de uma   causa   externa   para   compreender   como   indivíduos   diferentes   experimentam   o   "mesmo"   fenômeno;   a   categoria   da   causalidade,   entretanto,   só   tem   sentido dentro   do   domínio   do   fenômeno.   De   qualquer   modo,   o   conceito   de   causalidade   é   um   resquício   de   maneiras   antigas   de   pensar,   tendo   sido   substituído   hoje   em dia   pelo   processo   de   coordenação,   conforme   descrevemos   anteriormente.   Este   procedimento   conduz   a   estruturas   comunicáveis,   controláveis   e,   por   isso, objetivas.   É   justo   que   se   refira   a   elas   pela   expressão   antiga   "coisa   em   si".   Elas   são   forma   pura,   isentas   de   quaisquer   propriedades   sensoriais.   E   tudo   o   que podemos desejar e esperar.                   0   resultado,   naturalmente,   é   contraditório   à   concepção   tradicional   da   "coisa   em   si"   de   Kant.   Hegel,   por   exemplo,   afirma   na   Enciclopédia   da   Filosofia,   §   44:   "A coisa   em   si...   significa   que   o   objeto,   bem   como   tudo   aquilo   que   se   refere   a   consciência,   ao   sentimento,   à   emoção,   tanto   quanto   todas   as   emoções,   é   abstraído. É fácil ver o que resta - a abstração perfeita, o vazio completo, algo, precisamente, de um 'outro mundo' (Jenseits)..."                   Se   os   objetos   da   física   moderna,   principalmente   os   da   física   atômica,   são   identificados   a   "coisa   em   si"   de   Kant,   pode-se   concordar   com   Hegel   que   eles   são uma   "abstração   perfeita".   Mas   que   eles   sejam   perfeitamente   vazios,   algo   de   um   outro   mundo,   não   corresponde   aos   fatos.   Que   se   pense   na   sua   utilização prática   para   fabricar   coisas   como   máquinas,   aeroplanos,   reatores   nucleares,   plásticos,   computadores   eletrônicos   e   assim   por   diante   ad   infinitum.   Pode acontecer que as pesquisas nucleares possibilitem a transferência do ser humano para o "outro mundo". Contudo, Hegel não o concebia nem podia prevê-lo. 7. Retorno às imagens.                   Os   sistemas   de   fórmulas,   na   física,   não   representam   necessariamente   coisas   concebíveis,   familiares   através   da   experiência.   Não   obstante,   eles   são derivados   da   experiência,   por   intermédio   da   abstração,   e   são   continuamente   verificados   pela   experimentação.   Por   outro   lado,   os   instrumentos   utilizados   pelos físicos   são   feitos   de   materiais   conhecidos   e   podem   ser   descritos   em   linguagem   comum.   Os   resultados   obtidos   com   o   auxílio   de   tais   instrumentos,   chapas fotográficas,   tabelas   de   figuras   e   curvas,   são   também   desse   tipo.   0   traço   de   gotículas   numa   câmara   de   expansão   de   Wilson   sugere   a   trajetória   de   uma partícula;    uma    distribuição    regular    de    zonas    escuras    numa    chapa    fotográfica    sugere    uma    interferência    de    ondas.    Tais    interpretações    não    podem    ser descartadas sem prejuízo da intuição, que é a fonte das investigações, e sem tornar a comunicação entre as ciências mais difícil.                   Por   conseguinte,   os   físicos   são   propensos   a   descrever   o   conteúdo   de   suas   fórmulas   abstratas,   tanto   quanto   possível,   nos   termos   da   linguagem   comum,   por meio   de   conceitos   baseados   na   intuição.   As   dificuldades   específicas   encontradas   nesse   campo   tem   sido   abordadas   pela   Escola   de   Copenhague,   sob   a   direção de   Niels   Bohr.   Bohr   demonstrou   ser   possível   descrever   os   processos   atômicos   por   meio   dos   conceitos   "clássicos",   desde   que   se   desista   de   investigar simultaneamente   todas   as   propriedades   de   um   sistema   físico.   Sistemas   experimentais   diferentes,   mutuamente   excludentes   embora   complementares,   são requeridos.   0   experimentador   conta   com   a   escolha   de   qual   deles   empregar.   Assim,   reintroduz-   se   uma   tendência   subjetiva   na   física   que   não   se   pode desconsiderar.   Outra   perda   de   objetividade   é   devida   ao   fato   de   que   a   teoria   emite   apenas   prognósticos   prováveis,   o   que   da   margem   a   expectativas   graduais. Do   nosso   ponto   de   vista,   em   que   a   subjetividade   é   primaria   e   a   possibilidade   de   conheci-   mento   objetivo   é   problemática,   não   é   de   surpreender   que   não   seja possível uma separação rigorosa entre sujeito e objeto quando se tenta expressar o formalismo matemático com o auxílio de imagens.                   0   princípio   da   complementaridade   de   Bohr   é   um   outro   método   novo   de   pensamento.   Descoberto   pela   física,   ele   encontra   aplicação   em   muitos   outros campos.   Trata-se   de   mais   uma   indefinição   dos   métodos   de   pensamento   tradicionais   que   promete   importantes   resultados.   Isso,   porém,   ultrapassa   os   limites destas considerações.                   Desejo   mencionar   que   o   último   setor   das   pesquisas   físicas,   a   teoria   das   partículas   elementares,   permanece   ainda   inteiramente   em   abstrato.   Embora   ela gere   prognósticos   precisos   e   verificáveis,   os   próprios   processos   elementares   dificilmente   são   apreendidos   pela   intuição.   0   conteúdo   da   fórmula   universal   de Heisenberg parece-me até agora ser uma "coisa em si" abstrata e sem correlação imediata com as impressões sensoriais.                   Nessa   altura,   poder-se   -á   observar   que   a   volta   para   o   abstrato   parece   ser   uma   tendência   evidente   do   nosso   tempo.   Podemos   constatá-la   também   na   arte, principalmente   na   pintura   e   na   escultura   abstratas.   Mas   tal   paralelo   é   apenas   aparente.   Pois,   a   meu   ver,   os   pintores   modernos   evitam   as   associações   e interpretações   intelectuais   e   .   se   concentram   no   apelo   as   ópticas.   0   físico,   por   sua   vez,   se   vale   das   percepções   dos   sentidos   para   construir   um   mundo intelectual. A palavra "abstrato" refere-se nos dois casos a intenções opostas.                   Entretanto,   nos,   cientistas,   devemos   ter   sempre   em   mente   que   toda   experiência   baseia-se   nos   sentidos.   0   teórico   que,   absorto   por   suas   fórmulas,   esquece- se   dos   fenômenos   que   ele   almeja   explicar   não   é   um   verdadeiro   cientista,   físico   ou   químico,   e   se,   nos   seus   livros,   ele   se   distancia   da   beleza   e   da   diversidade   da natureza,   eu   o   teria   na   conta   de   um   pobre   idiota.   No   presente,   observamos   um   equilíbrio   razoável   entre   a   experimentação   e   a   teoria,   entre   a   realidade sensorial e a intelectual, e devemos cuidar para que ele seja preservado.                   Devemos   tomar   cuidado   também   para   que   o   pensamento   científico   em   termos   abstratos   não   se   estenda   a   outros   domínios   nos   quais   ele   não   é   aplicável. Os   valores   humanos   e   éticos   não   podem   ser   fundamentados   no   pensamento   científico.   É   verdade   que   Kant   tentou   edificar   um   sistema   ético   com   base   no modelo   das   categorias,   introduzindo   o   seu   "imperativo   categórico".   Mas   a   validade   desse   postulado   não   é   "decidível",   no   sentido   da   palavra   por   nós   definido. Ele   não   requer   mais   que   a   aceitação   e   a   crença.   Por   mais   atraente   e   satisfatório   que   o   pensamento   abstrato   possa   ser   para   o   cientista,   por   mais   valiosos   que sejam   os   seus   resultados   para   o   aspecto   material   da   nossa   civilização,   é   bastante   perigoso   aplicar   estes   métodos   fora   do   seu   contexto,   aplicá-los   a   religião,   a Ética, a arte, a literatura e a todas as humanidades.                   Desse   modo,   a   minha   digressão   pela   filosofia   pretendeu   não   ser   apenas   uma   ilustração   sobre   o   fundamento   da   ciência,   mas   também   uma   exortação   no sentido de restringir os métodos científicos aquele domínio a que de fato pertencem. NOTAS 1. Esta é a tradução para o inglês de uma conferência pronunciada na Alemanha durante o encontro anual dos Laureados Nobel , em Lindau, Bodensee, em 24 de junho de 1964. 2.   Talvez   não   seja   supérfluo   observar   aqui   que   as   idéias   correntes   acerca   da   essência   da   matemática   são   um   tanto   errôneas.   Por   exemplo,   repete-se   muitas   vezes   que   a   totalidade   da matemática   é   uma   tautologia,   isto   é,   algo   evidente   por   si,   se   propriamente   considerado.   Esta   opinião   é   expressa   pelo   distinto   biólogo   e   Prêmio   Nobel   P.   B.   Medawar,   em   seu   livro   The Uniqueness   of   the   Individual,   p.   15   (Methuen   &   Co.,   Londres).   A   verdade   é   que   a   matemática   só   se   inicia   com   o   estabelecimento   e   a   demonstração   de   teoremas   para   conjuntos   infinitos.   Assim,   1 +   2   +   3   +   4   =   10,   não   é   um   teorema   matemático,   mas   um   fato   trivial   e   verificável.   Já   1+   2+   3   ...   n   =   1/2n   (n+   1)   para   todos   os   valores   n   =   1,   2,   ...   (sem   fim)   é   um   teorema   matemático   simples   de ser provado, o que, porem, só pode ser feito com o auxilio de um princípio que não revela da lógica comum (o chamado principio da indução completa). 3.   A   interpretação   determinista   da   mecânica   newtoniana   é   na   verdade   uma   idealização   injustificada,   como   Brillouin   e   eu   provamos   cada   um   por   seu   lado.   Ela   se   baseia   na   idéia   de   medições absolutamente precisas, suposição que obviamente não tem nenhum sentido físico. Não é difícil traduzir a mecânica clássica em termos estatísticos. 4.   Aqui,   aplico   a   regra   lógica   do   "terceiro   excluso   "   (tertium   non   datur).   Tem   sido   investigado   o   problema,   particularmente   com   respeito   a   teoria   dos   quanta,   da   viabilidade   de   se   estabelecer uma "lógica trinária", quando entre "certo" e "errado" existe uma terceira possibilidade "indeterminada". Mas eu não posso discuti-lo aqui. Fonte: Humanidades - Vol 1 - nº2 - pag 160 -169.