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Ciência e Weltanschauung - a Álgebra como Ciência Árabe. L. Jean Lauand Universidade de São Paulo jeanlaua@usp.br       Originalmente, conferência proferida em 14 - 4 - 98 na Universidad Autónoma de Madrid - Depto. de Estudios Árabes e Islámicos. 1. A Ciência e seu contexto cultural                   Neste   estudo,   analisaremos   a   Álgebra   como   ciência   árabe.   Comecemos   por   antecipar   alguns   tópicos   de   discussão   sobre   que   significado   pode   ter   falar   em ciência   desta   ou   daquela   nação   ou   cultura   -   para   além   do   mero   fato   de   indicar   o   estágio   de   desenvolvimento   ou   a   produção   dos   cientistas   de   uma nacionalidade,   como   quando   se   diz:   "a   Física   russa   está   bastante   adiantada   e   é   detentora   de   diversos   Prêmios   Nobel"   ou   "só   a   Medicina   americana   consegue fazer esse tipo de transplante" etc.                   Ordinariamente   tendemos   a   pensar   que   o   conhecimento   científico   independe   de   latitudes   e   culturas:   uma   fórmula   química   ou   um   teorema   de   Geometria são   os   mesmos   em   latim   ou   em   chinês   e,   sendo   a   comunicação   o   único   problema   -   assim   se   pensa,   à   primeira   vista   -,   bastaria   uma   boa   tradução   dos   termos próprios   de   cada   disciplina   e   tudo   estaria   resolvido.   Na   verdade,   sabemos   que   as   coisas   não   são   tão   simples   e   não   é   preciso   muito   esforço   para   lembrar   que   a evolução   da   ciência   está   repleta   de   interferências   histórico-culturais,   condicionando   o   surgimento   de   uma   disciplina,   o   reconhecimento   de   um   resultado   ou   a adoção de um procedimento científico...                      É   conhecido,   por   exemplo,   o   fato   de   que   espíritos   tão   inovadores   como   Galileu   ou   Descartes   apegaram-se   ao   "dogma   científico"   do   horror   ao   vácuo   (1)   ;   Pascal   -   na   mesma   época   e   após   muita   relutância   -   superou   esse   erro.   Descartes,   em   seu   Princípios   da   Filosofia   -   mesmo   tratado   que   começa   afirmando   ser necessário   duvidar   radicalmente   de   tudo   o   que   possa   apresentar   a   mais   ínfima   incerteza   -,   toma   como   uma   intuição   irrefutável   da   razão   a   idéia   tradicional   de que a natureza tem horror ao vácuo...                   Esses   condicionamentos   são   de   diversas   ordens.   Assim,   ao   dizer   que   a   Geometria   (geo-metria,   em   grego)   é   uma   ciência   grega   ou   que   a   Álgebra   (al-jabr)   é uma ciência árabe (2) , estamos afirmando algo mais do que a "casualidade" de terem sido gregos ou árabes seus fundadores ou promotores.                   Aproximamo-nos   do   sentido   da   expressão   "ciência   árabe"   quando   pensamos   em   casos   paralelos.   Diz-se,   por   exemplo,   que   a   caligrafia   é   uma   "arte   árabe", mas   não   se   diz   que   a   pintura   ou   o   teatro   sejam   "artes   árabes".   Nesses   casos,   não   estamos   aqui   interessados   no   fato   de   haver   muitos   e   talentosos   calígrafos árabes   (ou   no   da   correspondente   escassez   de   pintores),   mas   numa   "conexão   de   sentido"   entre   a   arte   caligráfica   e   fatores   como:   a   atitude   árabe   perante   a escrita   (e   sua   relação,   digamos,   com   o   modo   como   o   Alcorão   considera   os   ayyat,   os   sinais   de   Deus);   a   desconfiança   semita   em   relação   à   imagem;   a   língua   e   a religião; etc. (3).                   No   caso   da   Álgebra,   não   foi   por   mero   acaso   que   ela   surgiu   no   califato   abássida   ("ao   contrário   dos   Omíadas,   os   Abássidas   pretendem   aplicar   rigorosamente a   lei   religiosa   à   vida   quotidiana"   (4)   ),   no   seio   da   "Casa   da   Sabedoria"   (Bayt   al-Hikma)   de   Bagdad,   promovida   pelo   califa   Al-Ma'amun   (5)   ,   uma   ciência   nascida   em língua árabe e criada por Al-Khwarizmi, pioneiro da ciência árabe e "antagonista da ciência grega" (6).                   Certamente,   o   que   a   moderna   matemática   entende   por   Álgebra   pode   parecer   uma   fria   e   objetiva   axiomática   -   constitutiva   de   uma   sintaxe   de   estruturas operatórias   e   destituída   de   qualquer   alcance   semântico   -,   mas   essa   Álgebra   de   hoje   é   o   resultado   da   evolução   -   em   desenvolvimento   contínuo   -   da   velha   al-jabr, forjada por um contexto cultural em que não são alheios, elementos que vão desde as estruturas gramaticais do árabe à teologia muçulmana da época... 2. Al-jabr e al-muqabalah                     Muhammad   Ibn   Musa   Al-Khwarizmi   foi   membro   da   "Casa   da   Sabedoria",   a   importante   academia   científica   de   Bagdad,   que   alcançou   seu   esplendor   sob   Al- Ma'amun   (califa   de   813   a   833).   A   ele,   Al-Khwarizmi   dedicou   seu   Al-Kitab   al-muhta-sar   fy   hisab   al-jabr   wa   al-muqabalah   ("Livro   breve   para   o   cálculo   da   jabr   e   da muqabalah"), o livro fundador da Álgebra.                   Comecemos   por   observar   que   as   palavras   que   nomeiam   a   nova   ciência,   al-jabr   e   al-muqabalah,   embora   empregadas   por   Al-Khwarizmi   em   sentido   técnico, eram (e ainda são) termos da linguagem corrente árabe. O radical trilítere j-b-r (7) está associado aos seguintes significados: Força:   por   exemplo,   o   anjo   Gabriel,   Jibryl,   é,   literalmente,   força-de-Deus.   No   Alcorão   (59,   23),   Al-Jabar   -   o   forte,   o   que   faz   valer   sua   vontade   -   é   um   dos   99   nomes de Deus. Força   que   compele,   que   obriga:   neste   sentido,   o   Alcorão   diversas   vezes   (11,   59;   14,   15;   28,   19;   40,   35;   etc.)   emprega   j-b-r   para   "tiranizar",   "tirano"   etc..   Não   por acaso,   a   corrente   teológica   muçulmana   que   nega   o   livre-arbítrio   do   homem   em   favor   de   um   inevitável   destino   pré-determinado   foi   denominada   jabariyah.   E também o serviço militar compulsório é ijbary... Restabelecer:   pôr   (ou   repor)   algo   em   seu   devido   lugar,   restabelecer   uma   normalidade.   Daí   que   tajbir   seja   ortopedia   e   jibarah,   redução,   no   sentido   médico: reconduzir   (talvez   forçando-o   por   tala,   gesso   etc.)   o   osso   a   seu   devido   lugar:   na   Espanha,   no   tempo   em   que   os   barbeiros   acumulavam   funções,   podia-se   ver   a placa "Algebrista y Sangrador" em barbearias (8). "Álgebra" no sentido de "ortopedia" vigorou, por muito tempo, também na língua portuguesa (9).                   Por   que   Al-Khwarizmi   escolhe   a   palavra   jabr   para   o   procedimento   fundamental   de   sua   nova   ciência?   Precisamente   porque   -   analogamente   à   ortopedia   -   a Álgebra   é   "forçar   cada   termo   a   ocupar   seu   devido   lugar".   Já   no   começo   de   seu   Kitab,   Al-Khwarizmi   distingue   seis   formas   de   equação,   às   quais   toda   equação dada pode ser reduzida (e, portanto, canonicamente resolvida). Em notação de hoje:         Al-jabr é a operação que soma um mesmo fator (afetado do sinal +) a ambos os membros de uma equação para eliminar um fator afetado com o sinal - .                   Já   a   operação   que   elimina   termos   iguais   ou   semelhantes   de   ambos   os   lados   da   equação   é   al-muqabalah   (que,   por   sua   vez,   deriva   do   radical   q-b-l,   cujo significado   é:   estar   frente   a   frente   -   daí   a   qiblah   na   mesquita   indicar   a   direção   de   Meca   -;   cara   a   cara   -   daí   também   que   qabila   seja   também   beijar   -;   confrontar; equiparar -"toma lá, dá cá" - etc.). Seja, então, um problema em que os dados podem ser postos sob a forma:   Al-Khwarizmi procede do seguinte modo:   Divide por 2 e reduz os termos semelhantes: E o problema já está canonicamente equacionado.                   Feita   esta   digressão   técnica,   passemos   a   analisar   (em   alguns   casos   não   será   possível   superar   a   mera   alusão   indicativa...)   as   relações   e   conexões   de   sentido que se dão entre a Álgebra e alguns aspectos da cultura árabe. 3. A Álgebra no Islam: o religioso e o temporal       Comecemos pelos fundamentos das necessidades práticas da sociedade.                   Em   seu   estudo   "L'Islam   et   l'épanouissement   des   sciences   exactes"   (10)   ,   Roshdi   Rashed,   para   mostrar   a   conexão   entre   Alcorão,   ciência   e   vida   prática, exemplifica   precisamente   com   a   Álgebra:   'ilm   al-fara'id   (ciência   da   partilha,   da   herança).   Os   próprios   juristas   referem-se   à   Álgebra   como   hisab   al-fara'id,   o cálculo   da   herança,   segundo   a   lei   corânica.   E   aí   temos   já   um   primeiro   condicionamento   histórico-cultural,   próprio   do   Islam,   no   qual   o   caso   da   herança   é emblemático. Trata-se da sólida união que se dá no Islam entre a ordem religiosa e a temporal.                   Por   coincidência,   o   mesmo   problema   da   herança   (para   o   muçulmano,   sob   a   legislação   direta   de   Allah)   é   proposto   a   Cristo.   Cristo,   que   declara   -   algo impensável na visão muçulmana - "A César o que é de César; a Deus o que é de Deus", recusa-se a estabelecer concretamente os termos da herança.                   Trata-se   de   um   episódio   evangélico   aparentemente   intranscendente:   "um   da   multidão"   aproxima-se   de   Cristo   e   faz   um   pedido:   que   Jesus   use   Sua autoridade   para   convencer   seu   irmão   a   repartir   com   ele   a   herança   (Lc   12,   13).   Para   surpresa   daquele   homem   (e   contrariando   a   mentalidade   antiga   e   a   oriental, que   uniam   o   poder   religioso   a   questões   temporais...),   Cristo   recusa-se   terminantemente   a   intervir   nessa   questão:   "Homem,   quem   me   estabeleceu   juiz   ou árbitro   de   vossa   partilha?"   (Lc   12,   14).   O   máximo   a   que   Cristo   chega   é   a   uma   condenação   genérica   da   cobiça,   contando   a   esses   irmãos   a   parábola   do   homem rico cujos campos haviam produzido abundante fruto e com o célebre convite à contemplação dos lírios: "Olhai os lírios do campo...".                   Bem   diferentes   são   as   coisas   no   mundo   muçulmano.   Roger   Garaudy,   no   capítulo   "Fé   e   Política"   mostra   como   a   tawhid   (unidade,   dogma   central   islâmico) muçulmana   se   projeta   sobre   a   política,   o   direito   e   a   economia:   "Deus   é   o   único   proprietário   e   ele   é   o   único   legislador.   Tal   é   o   princípio   de   base   do   Islam   em   sua visão de unidade (tawhid)" (11) .                   Garaudy   tem   razão   ao   afirmar   que   não   se   dá   no   Islam   (não   há   sacerdotes),   uma   teocracia   clerical   de   tipo   ocidental,   mas   é   inegável,   também,   que   a   visão muçulmana tem favorecido uma forte e arraigada teocracia própria e não por acaso o chefe político se intitula ayyatullah, "sinal de Deus" (12) .                   Seja   como   for,   o   fato   é   que,   na   questão   da   herança,   o   Alcorão   (4,   11   e   ss.)   diz   concretamente:   "Allah   vos   ordena   o   seguinte   no   que   diz   respeito   a   vossos filhos:   que   a   porção   do   varão   equivalha   à   de   duas   mulheres.   Se   estas   são   mais   de   duas   (13)   ,   corresponder-lhes-ão   dois   terços   da   herança.   Se   é   filha   única,   a metade.   A   cada   um   dos   pais   corresponderá   um   sexto   da   herança,   se   deixa   filhos;   mas   se   não   tem   filhos   e   lhe   herdam   só   os   pais,   um   sexto   é   para   a   mãe.   Etc., etc.". E conclui: "De vossos ascendentes ou descendentes, não sabeis quais vos são os mais úteis. Isto compete a Allah. Allah é onisciente, sábio".                      Contrastemos   com   o   cristianismo.   Naturalmente,   para   um   cristão,   o   mundo   é   criação   de   Deus   e   obra   de   sua   Inteligência:   o   mundo   foi   criado   pelo   Verbum e,   portanto,   conhecer   o   mundo   é   conhecer   sinais   de   Deus.   E   mais:   cada   criatura   é   porque   é   criada   inteligentemente   por   Deus,   participa   do   ser   de   Deus.   O   Deus cristão   é   Emmanuel,   Deus   conosco,   e   pela   Encarnação,   a   eternidade   de   Deus   ingressa   na   temporalidade   e   Cristo   encabeça,   recapitula   (como   diz   o   Catecismo   da Igreja Católica) toda a realidade criada.                   Daí   que   a   Igreja   defenda   tenazmente   a   lei   moral,   lei   natural   da   dignidade   do   ser   do   homem,   que   lhe   foi   conferida   pelo   ato   criador   do   Verbum.   Mas, precisamente   por   essa   mesma   concepção   teológica,   o   cristão   pode   afirmar   a   mais   decidida   autonomia   das   realidades   temporais:   porque   o   mundo   é   obra   do Verbum, a realidade temporal tem sua verdade própria, suas leis próprias, naturais, descartando o clericalismo (14) .                   Esta   é   mesmo   a   doutrina   oficial   da   Igreja,   que   rejeita   definitivamente   tanto   o   clericalismo   quanto   o   laicismo   que   pretende   afastar   Deus   da   realidade   social. Assim,   na   mesma   passagem   (4,   36)   em   que   a   Lumen   Gentium   (   (15)   )   afirma:   "nenhuma   atividade   humana   pode   ser   subtraída   ao   domínio   de   Deus",   ajunta:   preciso   reconhecer   que   a   cidade   terrena,   a   quem   são   confiados   os   cuidados   temporais,   se   rege   por   princípios   próprios".   E   a   Gaudium   et   Spes   (1,   3,   36):   "Se   por autonomia   das   realidades   terrestres   entendemos   que   as   coisas   criadas   e   as   mesmas   sociedades   gozam   de   leis   e   valores   próprios,   a   serem   conhecidos,   usados e   ordenados   gradativamente   pelo   homem,   é   absolutamente   necessário   exigi-la.   Isto   não   é   só   reivindicado   pelos   homens   de   nosso   tempo,   mas   está   também   de acordo   com   a   vontade   do   Criador.   Pela   própria   condição   da   criação,   todas   as   coisas   são   dotadas   de   fundamento   próprio,   verdade,   bondade,   leis   e   ordem específicas. O homem deve respeitar tudo isto, reconhecendo os métodos próprios de cada ciência e arte" (16) .                   Em   extremo   sentido   contrário,   um   Ayyatulah   Khomeini   (17)   pôde   afirmar:   "Costuma-se   dizer   que   a   religião   deve   ser   separada   da   política   e   que   as autoridades   religiosas   não   se   devem   imiscuir   nos   assuntos   de   Estado.   (...)   Tais   afirmações   só   emanam   dos   ateus:   são   ditadas   e   espalhadas   pelos   imperialistas. A   política   estava   separada   da   religião   no   tempo   do   Profeta?   (Que   Deus   o   abençoe,   a   Ele   e   aos   seus   fiéis)"   (p.   27).   "O   Islam   tem   preceitos   para   tudo   o   que   diz respeito   ao   homem   e   à   sociedade.   Esses   preceitos   procedem   do   Todo-Poderoso   e   são   transmitidos   pelo   seu   Profeta   e   Mensageiro.   (...)   Não   existe   assunto sobre   o   qual   o   Islam   não   haja   emitido   seu   juízo"   (p.   19).   "A   instauração   de   uma   ordem   política   secular   equivale   a   entravar   o   progresso   da   ordem   islâmica.   Todo poder   secular,   seja   qual   for   a   forma   pela   qual   se   manifesta,   é   forçosamente   um   poder   ateu,   obra   de   Satanás.   É   nosso   dever   exterminá-lo   e   combater   seus efeitos.   (...)   Não   temos   outra   solução   senão   derrubar   todos   os   governos   que   não   repousam   nos   puros   princípios   islâmicos,   sendo,   portanto,   corruptos   e corruptores (...) É esse o dever, não só dos iranianos, mas de todos os muçulmanos do mundo." (p. 23)                   O   Islam,   ao   contrário   do   cristianismo,   afirma   uma   absoluta   transcendência   de   Deus   (transcendência   acentuada   pela   doutrina   mu'atazilita)   e   uma   revelação ditada   (18)   ,   "descida"   (em   árabe,   o   verbo   nazala,   que   se   aplica   à   revelação   divina,   significa   também   "descer").   A   revelação   de   Allah   e   sua   tawhid   estão sinalizadas (19) no mundo. E o princípio da unidade não se aplica só à política, mas alcança também as ciências.                   Em   primeiro   lugar,   as   ciências   estão   a   serviço   da   fé   (20)   ,   também   de   um   modo   prático:   uma   sociedade   sob   a   forte   e   urgente   necessidade   de   obedecer   à   lei do   Altíssimo,   precisa   operacionalizar   as   soluções   dos   graves   problemas   de   partilha.   A   Álgebra   surge   como   uma   ciência   voltada   para   a   resolução   desse   problema suscitado   pelo   Alcorão   (21)   .   Cabe,   nesse   sentido,   uma   simples   -   porém,   sugestiva   -   observação:   a   Álgebra   de   Al-Khwarizmi   é   inteiramente   retórica   e   não emprega   simbolos.   Note-se   que   os   números   simples   são   designados   por   dirham,   que   é   uma   unidade   monetária;   a   incógnita   é   designada   pela   palavra   árabe xay', coisa, e, se é de ordem quadrada, mal (riqueza, bens, fortuna).                   Além   disso,   de   um   modo   intrínseco:   "o   princípio   da   tawhid,   o   ponto   capital   da   experiência   islâmica   de   Deus,   exclui   a   separação   entre   ciência   e   fé.   Tudo,   na natureza,   sendo   'sinal'   da   presença   divina,   o   conhecimento   da   natureza   torna-se   (...)   um   acesso   à   proximidade   de   Deus.   (...)   A   sabedoria   da   fé   integra   todas   as ciências   num   conjunto   orgânico,   pois   todas   têm   um   objetivo   no   mundo   que,   em   sua   totalidade,   é   uma   'teofania',   uma   revelação   dos   'sinais   de   Deus'.   O   universo é um 'ícone' no qual o Um se revela através do múltiplo por mil símbolos" (22).                   Nesse   sentido,   um   importante   instrumento   de   ligação   entre   as   ciências   é   precisamente   a   Álgebra.   Referindo-se   à   época   em   que   surge   a   Álgebra   de   Al- Khwarizmi,   Roshdi   Rashed   diz:   "O   começo   do   século   IX   é   um   grande   momento   de   expansão   da   matemática   helenística   em   língua   árabe.   Ora,   é   precisamente nesse   período   e   nesse   meio   (o   da   "Casa   da   Sabedoria"   de   Bagdad)   que   Muhammad   Ibn   Musa   al-Khwarizmi   redige   um   livro   com   assunto   e   estilo   novos.   De   fato, é   nessas   páginas   que   surge,   pela   primeira   vez,   a   Álgebra   como   disciplina   matemática   distinta   e   independente.   Tal   surgimento   -   e   já   os   contemporâneos   se apercebem   disso   -   foi   de   importância   crucial,   tanto   pelo   estilo   dessa   matemática,   como   pela   ontologia   de   seu   objeto   (grifo   nosso)   e,   mais   ainda,   pela   riqueza   de possibilidades   que   com   ela   se   abrem.   O   estilo   é,   ao   mesmo   tempo,   algorítmico   e   demonstrativo   e,   com   essa   álgebra,   imediatamente   já   se   deixa   entrever   a imensa potencialidade que impregnará a Matemática a partir do séc. IX: a aplicação das disciplinas matemáticas umas às outras" (23) . 4. A Álgebra no sistema língua/pensamento árabe.                   Neste   tópico   resumiremos   algumas   características   do   sistema   língua/pensamento,   no   sentido   que   essa   expressão   tem   em   Lohmann   (24)   e   as   relações   entre seus   dois   pólos:   língua   e   pensamento.   Essa   análise   permitir-nos-á   uma   melhor   compreensão   de   aspectos   da   Álgebra   como   ciência   árabe   e   de   sua   evolução   (em contraposição à Geometria, ciência grega).                   Uma   primeira   observação   sobre   as   relações   entre   língua   e   forma   de   pensamento   é   a   de   que   "o   que   nos   interessa   não   são   as   línguas   em   si,   mas   as   línguas enquanto   pré-determinam   uma   certa   concepção   de   mundo   para   o   falante,   ou   como   diz   Heidegger,   eine   Erschlossenheit   des   Daseins"   (25)   .   Em   outras   palavras, o   alcance   do   pensamento   condiciona-se   pela   linguagem.   Não   só   pelo   maior   ou   menor   número   e   profundidade   de   conceitos   e   potencial   expressivo   dos vocábulos, mas também (e principalmente) pelas estruturas peculiares de cada língua ou famílias de línguas.                Assim,   cabe   falar   num   sistema   língua/pensamento,   que,   no   caso   do   grego,   é   justamente   designado   por   logos   e,   no   caso   do   árabe,   por   ma'na.   "O   conceito   de ma'na,   'intencionalidade'   (26)   ,   é   tão   característico   da   forma   árabe   de   pensamento,   como   o   é   a   noção   específica   do   termo   grego   logos,   em   sua   concepção original,   para   a   forma   de   pensamento   do   grego   clássico.   E,   além   do   mais,   justamente   por   essas   duas   noções,   ou,   por   assim   dizer,   sob   os   auspícios   dessas   duas noções,   é   que   essas   duas   formas   de   pensamento,   encarnadas,   cada   uma   em   uma   língua   determinada   -   o   grego   clássico   e   o   árabe   clássico   -   exprimiram-se como tais em uma filosofia" (27) .       E, poderíamos complementar: exprimiram-se também em Álgebra e Geometria.                         Pois    o    sistema    grego,    logos,    busca    estabelecer    uma    exata    correspondência    entre    pensamento    e    realidade.    Correspondência    biunívoca    programaticamente   estabelecida   por   Parmênides   quando   afirma:   Tò   gàr   auto   noein   estin   te   kaì   einai   ("Na   verdade,   pensar   e   ser   é,   ao   mesmo   tempo,   a   mesma coisa"). Tal pretensão de pensamento é possibilitada por diversos fatos de linguagem. Destacaremos dois para efeito de contraste com o árabe. 1)   Ao   contrário   do   árabe,   no   centro   semântico   do   sistema   grego,   "encontra-se   o   verbo   esti   (ser),   que,   segundo   Aristóteles,   está   implicitamente   contido   em qualquer   outro   verbo"   (28)   .   O   verbo   ser,   característica   central   do   sistema   logos   (e   de   todo   o   indo-europeu),   permitiria   o   enlace   exato   entre   a   realidade   em   si mesma e o pensamento: pelo verbo ser o pensamento homo-loga o real.                   Um   exemplo   ajudar-nos-á   a   compreender   essa   relação.   Seja   o   caso   de   especialistas   em   segurança   contra   incêndio   que   homologam   um   determinado edifício.   Eles   dispõem   de   um   logos,   um   corpo   de   normas   técnicas   racionalmente   estabelecidas   e,   inspecionando   um   prédio,   verificam   se   a   realidade   (a   presença de   tantos   extintores   de   incêndio,   tais   e   tais   mangueiras,   portas   corta-fogo,   saídas   de   emergência   etc.)   daquele   edifício   está   no   mesmo   logos   (homo-logação)   da norma. Do mesmo modo, para o sistema grego, o pensamento está em homologia com a realidade. 2)   A   língua   grega   flexiona   temas   (enquanto   a   árabe   flexiona   a   própria   raiz   de   uma   palavra).   No   exemplo   tradicional   das   gramáticas   elementares   de   latim   (e, obviamente,   o   mesmo   se   dá   com   o   grego),   o   radical   ros   de   rosa   permanece   fixo,   pois   uma   rosa   é   uma   rosa;   qualquer   outro   fator   (seu   relacionamento   com   o mundo   exterior,   com   o   pensamento   humano   ou   com   qualidades   que   são   nela):   da   cor   da   rosa   (genitivo)   ao   mosquito   nela   pousado   (ablativo),   é   refletido   pelas desinências   rosam,   rosarum,   rosae   etc.   O   árabe,   por   sua   vez,   não   tem   radicais   fixos:   o   radical   trilítere   é   intra-flexionado:   SaLaM;   iSLaM;   SaLyM;   muSLiM   etc. (correspondente   à   ousía,   à   substantia).   Lohmann   interpreta   este   fato   do   seguinte   modo:   "O   árabe,   como   o   semítico   em   geral,   de   um   lado,   e   o   grego,   de   outro, estabelecem   relações   com   o   mundo:   um,   principalmente   pelo   ouvido   e   o   outro,   pelo   olho.   Tal   fato   levou   o   falante   semítico   a   uma   preponderância   da   religião, enquanto   o   grego   tornou-se   o   inventor   da   teoria.   Daí   decorre   (ou   procede...?)   uma   diferença   análoga   das   respectivas   línguas,   quanto   a   seu   tipo   de   expressão. Cada   um   desses   dois   tipos   caracteriza-se   por   um   procedimento   gramatical   específico:   flexão   de   raízes   no   semítico   e   flexão   de   temas   no   indo-europeu   antigo" (29) .                         A    omnipresença    do    verbo    ser    e    a    flexão    de    temas,    como    agudamente    indica    Lohmann,    favorecem    um    sistema    logos    ("ocular",    "especular")    de correspondência exata entre pensamento e realidade que, como veremos, é característica também da Geometria grega.                   Já   o   árabe   tende   ao   sistema   ma'na   -   pensamento   "auricular",   "pensamento   confundente"   (30)   -   pela   ausência   da   amarra   do   verbo   ser   como   verbo   de   ligação, pela indeterminação semântica de seus radicais trilíteres etc.       Configura-se, assim, uma despretensão de atingir a ousía, a substantia.                   Tal   posicionamento   é   confirmado   pela   religião   e,   particularmente,   pela   doutrina   mu'atazilita,   que   é   o   pensamento   teológico   imposto   oficialmente   pelo   califa Al-Ma'amun   em   Bagdad,   à   época   de   Al-Khwarizmi.   Pode-se   aplicar   à   Álgebra   as   considerações   de   Lohmann   sobre   as   "distorções"   na   recepção   da   filosofia   grega pelos   árabes   e,   principalmente,   por   Averróes:   "(Um   aspecto)   que   se   deve   conhecer   para   se   compreender   a   intenção   do   Comentador   (subjacente   à   sua interpretação   de   Aristóteles)   é   a   noção   de   essentia   (como   tradução   da   palavra   árabe   dhat).   Dhat   -   conceito   profundamente   arraigado   no   aristotelismo   árabe   na especulação   teológica   islâmica   do   século   IX   da   nossa   era,   em   Bagdad   -   é   a   essência   de   Deus,   em   oposição   aos   atributos,   por   cuja   mediação,   fala-se   de   Deus   no Alcorão.   A   essência   de   Deus,   segundo   a   doutrina   mu'tazilita   -   teologia   oficial   de   Bagdad   na   primeira   metade   do   século   IX   -   é   absolutamente   transcendente   em oposição   a   esses   atributos.   Essa   transcendência   absoluta   de   Deus   -   expressa   pela   noção   dhat   e   traduzida   em   latim   por   essentia   -,   em   oposição   a   todas   as noções   descritivas   (sifat,   em   árabe),   transformou-se   em   S.   Tomás   (e,   de   certa   maneira,   já   no   Comentador,   considerado   uma   autoridade   por   S.   Tomás)   em   uma transcendência da coisa real com relação ao intelecto humano - transcendência que conduziu, em seguida e enfim, ao Ding an sich de Kant".                   Junte-se   a   estas   considerações,   o   critério   -   certamente   não   casual   -   da   seleção   de   fontes   de   Al-Khwarizmi.   Solomon   Gandz,   o   moderno   editor   de   Al- Khwarizmi,   considera   essencial,   no   fundador   da   Álgebra,   seu   caráter   oriental,   não-grego   e   mesmo   anti-grego.   Vale   a   pena   transcrever   sua   introdução   ao capítulo "Mensuração" do Kitab: 5. Al-Khwarizmi, o antagonista da influência grega                   Na   universidade   de   Bagdad,   fundada   por   Al-Ma'amun   (813-33),   a   chamada   Bayt   al-Hikma,   onde   Al-Khwarizmi   trabalhou   sob   o   patrocínio   do   Califa,   floresceu também   um   velho   colega   seu,   chamado   Al-Hajjaj   ibn   Yusuf   ibn   Matar.   Este   homem   era   o   líder   da   corrente   a   favor   da   recepção   da   ciência   grega   pelos   árabes. Dedicou   toda   sua   vida   a   traduzir   para   o   árabe   as   obras   gregas.   Já   no   califato   de   Harun   al-Rashid   (786-809),   Al-Hajjaj   tinha   traduzido   Os   Elementos   de   Euclides. Quando   Al-Ma'amun   tornou-se   califa,   Al-Hajjaj   tentou   obter   seu   favor   para   uma   segunda   edição   de   sua   tradução   de   Euclides.   Posteriormente   (829-830), traduziu   o   Almagesto.   Ora,   Al-Khwarizmi   nunca   menciona   seu   colega   nem   tampouco   suas   obras.   Euclides   e   sua   Geometria,   embora   disponíveis   pela   boa tradução   do   colega,   são   totalmente   ignorados   por   Al-Khwarizmi,   quando   ele   escreve   sobre   Geometria.   E   mais,   no   "Prefácio"   de   sua   Álgebra,   Al-Khwarizmi claramente   enfatiza   seu   objetivo   de   escrever   um   tratado   popular   que,   ao   contrário   da   matemática   teórica   grega,   sirva   a   fins   práticos   do   povo   em   seus   negócios de   heranças   e   legados,   em   seus   assuntos   jurídicos,   comerciais,   de   exploração   da   terra   e   de   escavação   de   canais.   Al-Khwarizmi   aparece   não   como   um   discípulo dos   gregos,   mas   muito   pelo   contrário,   como   o   adversário   de   Al-Hajjaj   e   da   escola   grega.   Ele   é   o   representante   das   ciências   populares   nativas.   Na   Academia   de Bagdad,   Al-Khwarizmi   representa,   antes,   uma   reação   contrária   à   introdução   da   matemática   grega.   Sua   Álgebra   causa   uma   impressão   de   protesto   contra   a tradução de Euclides e contra toda a tendência de acolhimento das ciências gregas (31). 6. Árabe x Grego: os conceitos de razão e proporção       A geometria grega é o modelo acabado do sistema grego (32) , de uma "língua de visão", em correspondência, tanto quanto possível, bijetora com o real.                   Esse   "tanto   quanto   possível"   impõe   seus   limites:   na   matemática   grega,   não   encontraremos   o   número   zero   (o   zero   não   tem   correspondente-logos   com   o real)   e   é   conhecido   o   escândalo   histórico   produzido   pela   descoberta   da   incomensurabilidade   de   grandezas   (o   número   irracional,   para   os   gregos   a-logos!,   entra em   contradição   com   o   próprio   sistema   de   pensamento   grego).   E,   de   um   modo   positivo,   Euclides   (33)   afirma   que   o   um   é   a   realidade   e   a   unidade   é   aquilo   pelo que cada uma das coisas que são é chamada de um!                   Já   o   árabe   é   diferente.   Seu   sistema   língua/pensamento   não   é   logos,   mas   ma'na:   prevalece   não   a   pretensão   de   a   linguagem   acompanhar   pari   passu   o   ente, mas   o   sentido   mental   (intentio,   ma'na),   independentemente   da   correspondência-logos   com   o   real.   Daí   que   a   ciência   árabe,   por   excelência,   seja   a   Álgebra   (com zero e números negativos). E o irracional, na incomensurabilidade geométrica, é aceito com total naturalidade pelo árabe.                   Descreveremos   neste   tópico,   sucintamente,   a   superação   do   sistema   logos   no   caso   paradigmático   da   conceituação   matemática   de   razão   e   proporção   (34)   . Essa superação tem um importante marco inicial no matemático e poeta Omar Khayyam (35) , que abre caminho para os números irracionais.                   Para   analisar   os   conceitos   de   razão   e   proporção   nos   Elementos,   comecemos   pela   observação   de   Heath:   "É   digno   de   nota,   o   fato   de   que   a   teoria   das proporções recebe duplo tratamento em Euclides: refere-se a grandezas em geral, no livro V, e só ao caso particular de números, no livro VII" (36) .                   Para   Heath,   Euclides   teria   seguido   a   tradição:   reproduzindo   a   antiga   teoria   de   proporções   (anterior   à   crise   dos   incomensuráveis)   e   também   a   nova,   atribuída a   Eudoxo   (a   do   livro   V).   Esta   definição   (V,   def.   5)   reza:   "Diz-se   que   magnitudes   estão   na   mesma   razão   -   a   primeira   para   a   segunda   e   a   terceira   para   a   quarta   - quando:   para   quaisquer   equimúltiplos   que   sejam   tomados   da   primeira   e   da   terceira   comparados   a   quaisquer   equimúltiplos   que   sejam   tomados   da   segunda   e da    quarta,    os    primeiros    equimúltiplos    coincidem    em    superar    (igualar    ou    inferar)    os    segundos    equimúltiplos    respectivamente    tomados    na    ordem correspondente".                   Vuillemin   observa   que   esta   teoria   permite   eludir   o   problema   dos   irracionais   (37)   .   Subtrai-se   o   conceito   de   razão   ao   âmbito   da   medida   (e   evita,   portanto,   o escândalo   dos   incomensuráveis).   E   é   precisamente   essa   definição   de   razão   que   será   objeto   de   crítica   por   parte   de   Omar   Khayyam:   para   ele,   Euclides   não   teria atinado com o verdadeiro significado de razão, que se encontra no processo de medida de uma grandeza por outra (38) . Assim, Omar Khayyam define A:B = C:D                   Todos   os   múltiplos   da   primeira   são   retirados   da   segunda,   até   que   se   tenha   um   resto   (   R   )   menor   do   que   a   primeira   e,   igualmente,   todos   os   múltiplos   da terceira   são   retirados   da   quarta,   até   que   se   tenha   um   resto   (   R   )   menor   do   que   a   terceira.   E   o   número   de   múltiplos   da   primeira   na   segunda   é   igual   ao   número de   múltiplos   da   terceira   na   quarta.   E   mais:   extraímos   da   primeira,   todos   os   múltiplos   do   resto   da   segunda,   até   obter   um   novo   resto   (   R   )   menor   que   o   resto   da segunda   e   igualmente,   extraímos   da   terceira,   todos   os   múltiplos   do   resto   da   quarta,   até   obter   um   novo   resto   menor   que   o   resto   da   quarta.   E   o   número   de múltiplos   do   resto   da   segunda   é   igual   ao   número   de   múltiplos   do   resto   da   quarta.   Etc.   E,   assim,   ad   infinitum.   Então,   a   razão   entre   a   primeira   e   a   segunda   é necessariamente a que se dá entre a terceira e a quarta. Esta é que é a verdadeira proporcionalidade a modo geométrico (39)                   Este   processo   -   já   mencionado   por   Aristóteles   -   é   o   que   os   gregos   chamam   de   antanairesis   ou   antiphayresis.   A   quantidade   menor,   digamos   B,   é   subtraída   de A, com resto R 1 . E assim,                                             R 1  = A - q 1 B. A seguir, R 1  é subtraído - tanto quanto possível - de B:   R 2 = B - q 2 R 1 E assim por diante...                      Após   afirmar   a   excelência   da   antiphayresis,   Omar   Khayyam   levanta   a   questão   decisiva   para   o   estabelecimento   dos   números   irracionais:   se   a   razão   deve   ser entendida como um tipo de número.                Desprendidos   do   compromisso   grego   de   correspondência   pensamento/realidade,   autores   árabes   como   Nasir   ad-Din   at-Tusi   não   verão   inconveniente   em considerar todas as razões (e os limites das antiphayresis) como números.       Um tal acolhimento só é possível no sistema ma'na... Referências (1)   .   Para   o   episódio   do   "horror   ao   vácuo",   ver   Pieper,   Josef   "A   tese   de   Pascal:   Teologia   e   Física   -   uma   introdução   ao   Préface   pour   le   traité   du   vide"   Cuadernos   de   Cultura   y   Ciencia,   Madrid   -   S. Paulo, Univ. Autónoma de Madrid/ DloFflchusp, 1996, N. 2, pp.29 e ss. (2) . Ao longo deste trabalho, estaremos nos referindo principalmente aos casos paradigmáticos de Os Elementos de Euclides e da Álgebra, tal como fundada por Al-Khwarizmi. (3)   .   Uma   análise   desses   fatores   condicionantes   da   arte   árabe   encontra-se   em   Hanania,   Aida   R.   A   Caligrafia   como   Expressão   Cultural   -   A   Arte   de   Hassan   Massoudy,   tese   de   Livre-Docência,   FFLCH- USP, 1995. (4) . Anawati, M-M e Gardet, Louis Introduction a la Théologie Musulmane, Paris, Vrin, 1981, p. 44. (5) . Não é de todo alheio a nosso tema, o fato de que esse califa fez de uma particular doutrina, a mu'atazilita, a teologia oficial do Império. (6)   .   E,   como   indicaremos,   não   são   casuais   as   definições   euclidianas   de   razão   e   proporção   (e   os   limites   impostos   a   esses   conceitos   nos   Elementos)   nem   tampouco   a   reação   dos   matemáticos árabes a essas definições. (7) . Como se sabe, o radical consonantal é, em árabe, o que é semanticamente decisivo: as vogais, a prefixação etc. só fazem uma determinação periférica de sentido. (8) . Kline, Morris Mathematical Thought from Ancient to Modern Times, New York, Oxford University Press, 1972, p. 192. (9) . Cfr. por exemplo Nimer, Michel Influências Orientais na Língua Portuguesa, São Paulo, s.c.p., 1943, vol. I, verbete Álgebra. (10) . In Quatre conférences publiques organisées par l'Unesco, UNESCO, 1981, p. 152. (11) . Garaudy, Roger Promessas do Islam, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988, p. 70. (12)   .   Embora   Garaudy,   acostumado   -   por   seu   passado   marxista   -   à   distinção   entre   socialismo   ideal   e   "socialismo   realmente   existente",   uma   e   outra   vez   recorra   à   "distinção   entre   o   ensino corânico e a prática dos países muçulmanos..." (p. 70). (13) . E se só há filhas... (14) . Tratamos mais amplamente do tema em Tomás de Aquino hoje, Curitiba-S. Paulo, PUC-PR - GRD, 1993. (15) . Sugestivamente no capítulo IV, dedicado aos leigos - a cuja iniciativa e responsabilidade de cristãos compete a santificação da ordem temporal. (16) . Cfr. também Apostolicam Actuositatem (II, 7). (17) . Em seus Princípios políticos, filosóficos, sociais e religiosos, Rio de Janeiro, Record, 1980. (18) . E não meramente inspirada ao hagiógrafo, como no cristianismo. (19) . Ayyat significa não só sinal, mas também versículo do Alcorão. (20)   .   "Deus,   em   sua   misericórdia   infinita,   confiou   o   Alcorão   a   Seu   profeta,   para   que   o   homem   possa   decifrar   a   natureza   e,   desta   forma,   transcendê-la.   O   estudo   do   Alcorão   é   uma   iniciação   ao estudo   da   natureza.   O   estudo   da   natureza   é   uma   procura   de   Deus.   Os   fenômenos   naturais   são   cifras   que   significam   Deus.   O   Alcorão   fornece   os   testes   de   verificação   para   os   esforços decifradores   da   pesquisa   da   natureza.   O   homem   pode   comparar   a   natureza   ao   Alcorão,   porque   sua   mente   participa   do   espírito   divino.   A   origem   divina   da   mente   humana   é   vivenciada justamente   por   sua   capacidade   de   adequação   do   Alcorão   à   natureza.   Por   sua   capacidade   algébrica   e   decifradora,   a   mente   humana   tem   a   estrutura   da   mente   divina"   (FLUSSER,   V.   "A   mesquita   e a escrita", Revista de Estudos Árabes, DLO-FFLCHUSP, v. 1, n. 2, 1993, p. 33. (21)   .   Este   é   um   fato   tão   notório,   que   é   destacado   por   todos   os   historiadores   da   matemática   árabe.   Citaremos   aqui   apenas   três   dos   mais   conhecidos:   Yousch-kewitch,   A.   P.   Les   mathématiques arabes,   Paris,   Vrin-CNRS,   1976.   Dalmedico,   A.   -   Peiffer,   J.   Une   histoire   des   mathématiques,   Paris,   Seuil,   1988.   Waerden,   B.   L.   van   der   A   History   of   Algebra,   New   York,   Springer   Verlag,   1985.   Note-se que   precisamente   a   parte   sobre   problemas   práticos   de   herança,   a   parte   III   do   Kitab...,   que   ocupa   mais   da   metade   do   livro   de   Al-Khwarizmi,   é   omitida   nas   traduções   latinas   de   Roberto   de Chester - feita em Segóvia em 1145 - e de Gerardo de Cremona - falecido em 1187 -, em Toledo. (22) . Garaudy, op. cit. pp. 81, 84-85. (23) . "Modernidade Clássica e Ciência Árabe", Revista de Estudos Árabes, DLO-FFLCHUSP, v. 1, n. 1, 1993, p. 9. (24)   .   Lohmann,   Johannes   "Santo   Tomás   e   os   Árabes   -   Estruturas   lingüísticas   e   formas   de   pensamento"   Revista   de   Estudos   Árabes,   Centro   de   Estudos   Árabes/FFLCHUSP,   São   Paulo,   Ano   III,   n.   5-6, pp.   33-51.   Tit.   orig.:   "Saint   Thomas   et   les   Arabes   (Structures   linguistiques   et   formes   de   pensée)",   Revue   Philosophique   de   Louvain,   t.   74,   fév.   1976,   pp.   30-44.   Trad.:   Ana   L.   Carvalho   Fujikura   e Helena Meidani. (25)   .   Art.   cit.   p.   38.   Mesmo   reconhecendo   uma   certa   radicalização   na   posição   de   Lohmann,   não   resta   dúvida   de   que   há   -   senão   uma   determinação   -   pelo   menos   um   forte   condicionamento   do pensamento pelas estruturas da língua. Talvez fosse melhor falar em interação dialética, na medida em que também o pensamento influencia a formação da língua. (26) . No sentido técnico-filosófico de intentio, apresentado por Lohmann. (27) . Art. cit. p. 35-36. (28) . Art. cit. p. 35. (29) . Art. cit., p. 36. (30) . No sentido "técnico" que Ortega y Gasset e Julian Marías dão à expressão. (31) . Cit. por Waerden, B. L. op. cit., pp. 14-15. (32)   .   Já   a   geometria   contemporânea,   ligada   à   moderna   concepção   de   sistemas   axiomáticos,   aproximar-se-ia   de   uma   outra   forma   de   pensamento   (derivada   do   sistema   logos,   mas   independente) - também discutida por Lohmann no artigo citado -, paradigmatizado pelo inglês falado nos dias de hoje. (33)   .   Livro   VII,   def.   1.   Citaremos   pela   ed.   de   HEATH,   Thomas   L.   The   Thirteen   books   of   Euclid's   Elements,   translated   from   the   text   of   Heiberg   with   Intr.   and   Comm.   New   York,   Dover,   2nd.   ed.,   s.d., vol. I-III. (34)   .   Para   um   estudo   da   recepção   do   conceito   euclidiano   de   razão   entre   os   árabes,   veja-se   Plooij,   E.   B.   Al-Djajjâni   -   Commentary   on   Ratio   in   Euclid's   conception   of   Ratio   as   criticized   by   arabian commentators, Rotterdam, Uitgeuerij W.J. van Hengel, 1950. (35)   .   Omar   Khayyam   está   tão   distante   do   ideal   grego   de   homologação   do   real   e   tão   imerso   nos   amthal   do   sistema   ma'na,   que   numa   das   Rubayyat   -   a   de   número   XCIV   (cito   pela   edição   Les Quatrains   d'Omar   Khayyam,   trad.   intr.   et   notes   de   Charles   Grolleau,   Paris,   Champ   Libre,   1980   -   chega   a   escrever:   "Para   falar   claramente   e   sem   parábolas:   /   Nós   somos   as   peças   do   jogo,   jogado pelo Céu / Que brinca conosco no tabuleiro da existência / E depois voltamos, um a um, para a caixa do Nada". (36) . Op. cit. v. II, p. 113. (37) . Vuillemin, J. De la Logique a la Théologie, Paris, Flammarion, 1967, pp. 12 e ss. (38)   .   Como   observa   Dirk   J.   Struik   em   "Omar   Khayyam   Mathematician"   The   Mathematics   Teacher,   April   1958:   "Omar   is   here   on   the   road   to   the   extension   of   the   number   concept   which   leads   to the notion of the real number". (39) . Omar Khayyam cit. por Werden, B. L. v. der A History of Algebra - From al-Khwarizmi to Emmi Noether, N. York, Springer Verlag, 1985, p. 30.