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O Princípio da Incerteza de Heisenberg. Henrique Fleming                   O   processo   que   levou   Werner   Heisenberg   a   chegar   aos   princípios   da   Mecânica   Quântica,   na   década   de   vinte,   é   sumariado   neste   artigo.   Jovem   estudante de   Sommerfeld,   Heisenberg   era,   segundo   o   depoimento   de   seus   contemporâneos,   dotado   de   um   brilho   excepcional.   Um   dos   seus   pontos   de   partida   foi   a leitura do "Timeu" de Platão.                   Werner   Heisenberg   (1901-1976)   foi   o   descobridor   da   Mecânica   Quântica,   que   desempenha   hoje   o   papel   que   foi   anteriormente   da   Mecânica   Newtoniana. Em   muitos   aspectos   essa   teoria   é   capaz   de   causar   um   impacto   ainda   maior   que   o   da   Relatividade   de   Einstein,   e   não   só   no   meio   cientifico.   De   fato,   como pretendo   mostrar   neste   e   em   outros   artigos,   a   Mecânica   Quântica   traz   em   seu   bojo   idéias   que   deverão   alterar   profundamente   a   teoria   do   conhecimento,   e até mesmo pôr em questão a possibilidade de obtenção ilimitada de conhecimento.                   Heisenberg   chegou   a   Mecânica   Quântica   seguindo   uma   estratégia   que   é   de   interesse   em   si.   Para   entendê-la   é   necessário   rever   a   situação   da   Física   por volta   de   1925.   Em   1911   Niels   Bohr   apresentou   um   modelo   do   átomo   de   hidrogênio   que   descrevia   corretamente   o   seu   espectro.   Para   obtê-lo,   Bohr acrescentava   as   leis   da   Mecânica   Newtoniana   uma   regra   que   selecionava   órbitas   nas   quais   o   elétron   podia   mover-se   em   torno   do   núcleo   sem   emitir   radiação eletromagnética.   Esta   regra,   hoje   conhecida   como   regra   de   quantização   de   Bohr,   devia   ser   aceita   sem   outra   justificação   que   o   seu   sucesso,   tratando-se, assim,   de   um   novo   postulado.   Apesar   do   êxito   na   reprodução   dos   dados   experimentais,   a   situação   permanecia   altamente   insatisfatória:   a   regra   de quantização   não   era   consistente   com   a   teoria   da   interação   matéria   -   radiação,   que   previa   a   emissão   de   radiação   mesmo   nas   órbitas   selecionadas.   Com   o passar   dos   anos   o   prosseguimento   das   pesquisas   ao   longo   das   linhas   abertas   por   Bohr   conduziu   a   formulação   de   novas   regras   de   quantização,   bastante elaboradas,   chamadas   de   Bohr-   Sommerfeld,   que   permitiam   o   cálculo   do   espectro   de   um   número   razoável   de   átomos,   de   novo   através   da   seleção   de   certas órbitas,   nas   quais   os   elétrons   podiam   mover-se   sem   irradiar.   Nenhuma   luz   fora   lançada,   no   entanto,   sobre   o   problema   de   justificar   essa   propriedade   especial de   tais   órbitas.   Uma   excelente   visão   dessa   época   é   propiciada   pela   leitura   do   livro   clássico   de   Sommerfeld,   "Atombau   und   Spektrallinien",   que   compila praticamente   tudo   o   que   se   sabia   sobre   o   átomo   em   1920.   Enquanto   que   um   certo   sucesso   (malgrado   o   aspecto   "ad   hoc"   das   regras)   era   obtido   na   descrição da   radiação   emitida   por   um   átomo,   outras   propriedades   atômicas   permaneciam   misteriosas.   A   intensidade   da   emissão,   por   exemplo,   e   o   espalhamento   da radiação,   eram   muito   pouco   entendidos,   na   época.   As   forças   de   longo   alcance   entre   moléculas,   chamadas   forças   de   Van   der   Waals,   não   eram   entendidas nem mesmo qualitativamente.                         Foi    neste    período    que    Heisenberg,    jovem    estudante    de    Sommerfeld,    apareceu    no    cenário    cientifico.    Era,    a    julgar    pelos    comentários    de    seus contemporâneos,   uma   pessoa   de   excepcional   brilho,   mesmo   pelos   elevadíssimos   padrões   da   ciência   alemã   de   então.   Não   tardou   a   se   convencer   de   que   os esquemas   que   permitiam   o   cálculo   dos   espectros   de   certos   átomos   eram   demasiado   complicados   e   pouco   confiáveis   para   poderem   constituir   uma   mecânica do   átomo,   para   não   falar   das   inconsistências   que   brotavam   de   todo   ponto   ao   qual   se   dirigisse   alguma   atenção.   Pareceram-lhe   semelhantes   aos   mecanismos descritos   no   Timeu,   de   Platão,   que   lera   por   aquela   época.   Tendo   encontrado   pouco   depois   em   Niels   Bohr   um   julgamento   semelhante   ao   seu,   e   todo   o estímulo   de   que   poderia   precisar,   partir   para   a   descoberta   de   uma   mecânica   para   o   átomo   com   uma   estratégia   sensata:   já   que   as   elaboradas   regras   para   o cálculo   de   órbitas   eram   eficientes   para   o   cálculo   de   espectros,   mas   falhavam   no   cálculo   de   muitas   outras   propriedades   do   átomo,   pareceu-lhe   natural   tentar obter   os   espectros   atômicos   sem   falar   em   trajetórias,   sem   mesmo,   na   verdade,   supor   a   existência   de   trajetórias.   Em   termos   mais   gerais,   procurou   obter   as freqüências   da   luz   emitida   pelos   átomos   utilizando   em   seus   cálculos   apenas   quantidades   macroscopicamente   observáveis.   Fazendo,   isto   é,   o   mínimo   de suposições   sobre   o   que   era,   em   detalhe,   o   átomo.   A   história   de   como   conseguiu,   desta   forma,   descobrir   a   mecânica   atômica,   que,   por   isso   mesmo,   é   a mecânica   de   todo   o   Universo,   não   pode   ser   contada   nas   páginas   de   um   jornal.   É,   contudo,   digno   de   nota   que   conseguiu   resolver   o   problema   quando   resistiu a   tentação   de   impor   a   Natureza   qualquer   idéia   do   que   fosse   um   átomo,   e   se   dispôs   a   ouvir   o   que   ela   tinha   a   dizer.   Em   1925,   com   a   descoberta   da   Mecânica Quântica, Werner Heisenberg tornou-se um dos maiores físicos de todos os tempos.       0 Principio da Incerteza                   De   posse   da   mecânica   do   átomo,   poder-se-ia   pensar   em,   utilizando   a   teoria,   deduzir   a   trajetória   descrita   por   um   elétron.   Para   surpresa   da   comunidade cientifica,   a   resposta   da   Mecânica   Quântica   foi   de   que   era   irnpossível   calcular   a   trajetória   pela   razão   de   que   não   existia   trajetória!   A   proibição   dessa   existência é   expressa   através   do   famoso   Princípio   da   Incerteza,   descoberto   por   Heisenberg   em   1927,   que   afirma   a   impossibilidade   de   se   determinar   simultaneamente   a posição   e   a   velocidade   de   uma   partícula   com   precisão   arbitrariamente   grande.   Na   verdade   é   possível   especificar   qualquer   uma   dessas   duas   quantidades   tão precisamente   quanto   se   queira,   mas,   a   medida   que   se   aumenta   a   precisão   na   determinação   de   uma,   perde-se   precisão   na   determinação   da   outra.   Mais precisamente,   não   é   possível   estipular   que   o   vaIor   da   coordenada   x   e   do   seu   momento   conjugado   p   sejam   dados   por   X   e   P   com   incerteza   arbitrariamente pequena.   Ao   contrário,   se   DELTA00.gif   -   945   Bytesx   e   DELTA00.gif   -   945   Bytesp   designam   respectivamente   a   incerteza   no   valor   da   coordenada   e   do   momento, existe   a   desigualdade,   chamada   de   relação   de   incerteza,   DELTA00.gif   -   945   Bytes   x   .   DELTA00.gif   -   945   Bytes   p   maior-igual.gif   -   937   Bytes   h/4,   onde   h   é   a constante   de   Planck.   Uma   vez   que   a   constante   é   muito   pequena   (6,6   x   10-27   erg.   seg),   a   relação   de   incerteza   é   de   pouca   importância   para   a   experiência ordinária.   Por   exemplo,   o   erro   na   determinação   da   posição   e   da   velocidade   de   um   satélite   artificial   é   absolutamente   irrelevante   mesmo   para   os   mais refinados    cálculos    de    órbitas.    Por    outro    lado,    é    de    grande    significado    na    interpretação    de    experimentos    atômicos    e    possui    implicações    filosóficas surpreendentes.                   0   Principio   da   Incerteza   é   uma   conseqüência   inelutável   da   Mecânica   Quântica.   Pode,   contudo,   ser   compreendido   em   termos   de   certas   experiências imaginárias,    estudadas    em    grande    detalhe    por    Heisenberg    e,    posteriormente,    por    Bohr.    Examinemos,    de    maneira    muito    simplificada,    um    desses experimentos.   A   visualização   de   um   elétron   se   dá   quando   um   fóton   emitido   por   este   elétron   é   detectado   (digamos,   pela   retina   do   observador).   Lance-se,   por exemplo,   um   feixe   de   fótons   de   comprimento   de   onda   L   em   direção   à   região   onde   se   encontra   o   elétron.   O   fóton   que   com   ele   colidir   será   refletido   (absorvido e   reemitido)   e   sua   detecção   nos   informará   sobre   a   posição   do   elétron.   Naturalmente,   um   fóton   de   comprimento   de   onda   L   não   pode   determinar   a   posição do   elétron   com   precisão   maior   do   que   L.   Seria   de   se   pensar,   portanto,   que   a   utilização   de   um   fóton   de   comprimento   de   onda   menor   fornecesse   informações mais   completas.   Sabe-se,   porém,   que   a   quantidade   de   movimento   de   um   fóton   é   inversamente   proporciona   ao   seu   comprimento   de   onda.   Logo,   ao   usarmos fótons    de    menor    comprimento    de    onda    para    aprimorarmos    a    medida    da    posição    do    elétron,    estaremos    automaticamente    usando    fótons    de    maior quantidade   de   movimento   que,   ao   serem   refletido   pelo   elétron,   transferirão   a   ele   uma   quantidade   de   movimento   tanto   maior   quanto   menor   for   o comprimento   de   onda.   Assim,   ao   aprimorarmos   a   determinação   da   posição   do   elétron,   estaremos   alterando   o   valor   de   sua   quantidade   de   movimento   por um   valor   que   é   tanto   maior   quanto   mais   precisa   for   a   determinação   da   posição.   Uma   análise   mais   detalhada   mostra   que   o   valor   desta   transferência   de momento   é   incontrolável.   Ora,   a   trajetória   de   uma   partícula   é   determinada   pelo   conhecimento,   em   um   dado   instante,   da   posição   e   da   velocidade   da partícula.   A   impossibilidade   desse   duplo   conhecimento   acarreta   automaticamente   a   impossibilidade   de   determinação   da   trajetória.   Não   há   trajetórias   na mecânica Quântica !                   Nessa   análise   da   observação   de   um   elétron,   o   fóton   representa   a   ação   do   observador   sobre   o   objeto   observado.   O   fato   de   o   elétron   ser   visto   implica   a necessidade   de   que   um   fóton   seja   emitido   por   ele,   com   as   conseqüências   descritas.   O   princípio   da   incerteza   é,   assim,   uma   manifestação   da   impossibilidade de   se   ignorar   a   interação   observador   -   sistema   observado.   É   impossível,   na   descrição   do   mundo   atômico,   separar   completamente   o   observador   do   "resto   da Natureza",   uma   vez   que   o   distúrbio   causado   pela   observação   é   comparável   aos   próprios   fenômenos   que   estão   sendo   observados.   É   notável   que   essa "intromissão"   do   observador   em   toda   descrição   da   Natureza   seja,   não   o   resultado   de   uma   convicção   filosófica,   mas   uma   conseqüência   imprevista   de   uma teoria   formulada   para   o   estudo   quantitativo   de   fenômenos   em   escala   atômica.   É   isso   que   dá   a   essa   impossibilidade   de   isolamento   da   Natureza   em   relação ao   observador   uma   força   que   os   muitos   argumentos   apresentados   durante   a   disputa   milenar   entre   as   concepções   materialista   e   idealista   do   Universo   jamais puderam   acumular.   Deixemos,   porém,   para   outra   ocasião   a   exploração   deste   importante   tema   a   fim   de   examinarmos   algumas   conseqüências   menos controvertidas   das   surpreendentes   exigências   da   Mecânica   Quântica.   Vínhamos   de   uma   física,   a   Newtoniana,   em   que   a   presença   de   um   observador   podia ser   ignorada,   e   chegamos   a   física   de   Heisenberg,   em   que   a   omissão   dos   distúrbios   causados   pelo   observador   torna   a   teoria   inconsistente.   É   uma   teoria muito   mais   difícil,   mas   como   me   parece   mais   profunda!   Voltando   por   um   momento   a   análise   da   determinação   da   posição   de   um   elétron   por   meio   de   um fóton,   vemos   que   a   impossibilidade   de   determinar   acuradamente   a   posição   e   o   momento   de   um   elétron   está   ligada   ao   fato   de   que   a   Natureza   nos   oferece como   o   seu   mais   sensível   instrumento   para   esse   gênero   de   medida   o   fóton.   Ora,   a   teoria   de   Heisenberg   contém   em   si   as   limitações   à   acuracia   dessa   medida, e   a   prevê.   Logo,   de   alguma   forma,   a   teoria   se   manifesta   quanto   a   existência   e   ao   tipo   desse   mais   sensível   instrumento   de   medida.   A   Mecânica   Quântica,   por conseguinte,   vai   mais   longe   do   que   as   teorias   que   a   precederam:   não   apenas   diz   como   a   Natureza   procede,   mas   é   capaz   de   se   manifestar   sobre   o   que   a Natureza   pode   ser,   e   o   que   não   pode!   Outra   conseqüência   do   Princípio   da   Incerteza   foi   notada   pelo   grande   físico   inglês   Dirac.   Observa   ele   que   se   tem,   agora uma   definição   objetiva   do   que   é   grande   e   do   que   é   pequeno   na   Natureza,   de   acordo   com   a   possibilidade   ou   impossibilidade,   respectivamente,   de   se desprezar   a   ação   do   observador   em   uma   medida   da   quantidade   em   questão.   Limites   intrínsecos   à   precisão   de   experiências,   como   os   que   foram   aqui descritos,   tem   um   significado   filosófico   que   estamos   ainda   muito   longe   de   esgotar.   Em   particular,   a   Metafísica   se   interessará   por   saber   se   a   Natureza   é inerentemente   indeterminista,   ou   se   o   determinismo   é   rompido   pelo   ato   de   observação.   Em   um   certo   sentido   a   discussão   carece   de   significado,   urna   vez   que propriedades   naturais   inerentemente   não   observáveis   desafiam   qualquer   avaliação   objetiva.   Uma   citação   do   físico   americano   P.   W.   Bridgman   a   esse   respeito é oportuna :                      "O   efeito   imediato   do   Princípio   da   Incerteza   será   abrir   as   portas   a   uma   onda   de   pensamento   licencioso.   Isso   virá   da   recusa   em   aceitar   no   seu   verdadeiro significado   a   afirmação   de   que   não   faz   sentido   penetrar   em   uma   escala   muito   mais   profunda   do   que   a   do   elétron   e   apresentará   a   tese   de   que   realmente   um   domínio   além   dessa   escala,   apenas   que   o   homem,   com   suas   presentes   limitações,   não   está   em   condições   de   penetrá-lo.   A   existência   de   um   tal   domínio será   a   base   de   uma   orgia   de   racionalizações.   Ele   será   a   substância   da   alma   ...   o   princípio   dos   processos   vitais;   e   ele   será   o   meio   da   comunicação   telepática. Um   grupo   achará   na   falha   da   lei   física   da   causa   e   efeito   a   solução   do   antigo   problema   do   livre-arbítrio,   enquanto,   por   outro   lado,   o   ateu   achará   ali   a justificativa para a sua convicção de que o acaso domina o Universo."                   Em   outras   palavras,   na   análise   das   conseqüências   do   Princípio   da   Incerteza,   todo   o   cuidado   é   pouco.   Por   outro   lado,   o   alcance   dessas   idéias fundamentais   é   praticamente   ilimitado,   e   cinqüenta   anos   de   convivência   com   o   Princípio   da   Incerteza   não   foram   suficientes   para   explorar   senão   as   suas conseqüências mais imediatas. O tempo, creio, revelará em Heisenberg um de nossos mais profundos pensadores. Texto gentilmente cedido pelo Prof. Henrique Fleming e pelo Estado de São Paulo. Suplemento Cultural - nº 68 - ano II - pág 7 - 1978